Wittgenstein: silêncios e grito

António Rego Chaves

A obra de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi na sua quase totalidade editada postumamente, pois durante a vida limitou-se a publicar, em 1921, o célebre «Tratado Lógico-Filosófico» e, oito anos depois, um curto texto de dez páginas numa revista destinada a especialistas de Aristóteles. Todos os restantes escritos do pensador vienense, incluindo as «Investigações Filosóficas», só seriam dados à estampa a partir de 1953, sob a égide de três professores, todos eles seus ex-alunos, que mandatara como administradores do espólio intelectual: Elisabeth Anscombe, G. H. von Wright e Rush Rees.

O caso dos «Cadernos», escritos entre 1914 e 1916, em plena frente de batalha, quando o autor combatia na I Guerra Mundial, constitui um triste exemplo das distorções a que pode conduzir o assenhoreamento, por parte de indivíduos no mínimo pouco rigorosos, da obra póstuma de um criador. Wilhelm Baum denunciou desde os anos 70 as circunstâncias em que foram editadas essas meditações, amputadas do que Ascombe e von Wright consideraram, em 1960, num prefácio à obra, «carecer de interesse». Ora, precisamente com aquilo que os pudicos administradores opinaram «carecer de interesse», publicaria Baum, em 1985, os «Diários Secretos» de Wittgenstein – nada mais, nada menos, do que as observações escritas em cifra nas páginas pares dos cadernos onde se encontrava o manuscrito original. Concluindo: apenas as frias, silenciosas e neopositivistas páginas ímpares («heterónimas»?) tinham sido escolhidas para integrar os «Cadernos»; quanto ao apaixonado grito («ortónimo»?) das crenças e descrenças religiosas do homem só e atormentado, fora decidido relegá-lo para um orwelliano «buraco da memória».

Pouco a pouco, as motivações da conduta dos «patrões» legais do pensamento do autor do «Tractatus» foram sendo clarificadas. Primeiro, quando, após um artigo escrito por Wilhelm Baum, com o título «O cristianismo tolstoiano de Wittgenstein», Rush Rees se atreveu a negar, sobranceiro mas sem justificação, os evidentes paralelismos entre o filósofo austríaco e o escritor russo. Depois, ao ser posta em relevo a familiaridade do pensador – leitor pertinaz do William James de «As Variedades da Experiência Religiosa» e de «A Vontade de Crer» –, com a experiência vivida da «fé sem palavras» e do misticismo. Ficaram assim bem patentes as tentativas de regresso de Wittgenstein ao cristianismo, bem como o abismo que o separaria «a priori» de Bertrand Russell ou do Círculo de Viena.

Moral da história: os três zelosos censores, desejosos de apresentar uma imagem apolínea e edificante do mestre, não se limitaram a procurar ocultar as persistentes crises religiosas de Wittgenstein e o seu convívio com Santo Agostinho, Pascal, Kierkegaard ou Tolstoi; quiseram também «apagar» da biografia do filósofo o seu sofrimento com os «pecados» da masturbação e da homossexualidade, as fragilidades físicas e psíquicas, as obsessões existenciais. Falharam, no entanto, a bem da verdade, na sua inepta tentativa de metamorfosear um genial e angustiado homem de carne e osso em cinzenta máquina de produzir conteúdos lúdicos para jovial consumo de universidades anglo-saxónicas...

Recordando «as raízes religiosas do silêncio mais eloquente do nosso século», escreveu Eckhard Nordhofen em 1988: «A velha disputa sobre se o famoso silêncio que aparece no final do “Tractatus” é um silêncio sobre algo ou é um silêncio sobre nada ficou sem dúvida resolvida. É um silêncio sobre algo, sobre o mais importante, sobre aquilo que não se deixa dizer. É teologia negativa no seu grau mais puro.»

Os «Cadernos» agora publicados não podem deixar de ser confrontados com os já mencionados «Diários Secretos», com os Cadernos de Cambridge (1930-1932) e de Skjolden (1936-1937) e com as «Notas Várias» (1914-1951), tudo ainda não editado em Portugal. Só este conjunto é susceptível de clarificar e aprofundar o cerne das temáticas da linguagem, da estética, da ética e da religião afloradas no «Tratado Lógico-Filosófico» ou nas «Investigações Filosóficas». Porque, como advogou David Stern e nunca será despiciendo repetir, «a totalidade» – sublinhe-se, «a totalidade», mesmo, sem qualquer omissão, seja a que pretexto for – «dos escritos póstumos de Wittgenstein deve ser considerada como pertencente à sua obra.»

Ludwig Wittgenstein, «Cadernos,1914-1916», Edições 70, 189 páginas