Maomé e as «guerras santas»

António Rego Chaves

Escrevia em 1972 o historiador Borges Coelho, em «Portugal na Espanha Árabe», que «a ignorância geral é a lei no que se refere à civilização árabe e muçulmana entre nós». Acrescentava: «O fatal espírito de cruzada não poupou, durante séculos – os da Reconquista e os posteriores da competição Além-Mar – muitos vestígios, particularmente os escritos, que se referiam à civilização árabe no Garbe do Andaluz.» E concluía: «Qual de nós não se sentiu alguma vez, ao estudar a história medieval, uma espécie de cruzado da Reconquista? Os acontecimentos são vistos do lado de cá com os olhos dos ideólogos da cruzada. Quem é esse mouro com o qual, segundo nos deram a entender, só eram possíveis as relações de espada contra alfange?»

Dez anos depois, o libanês Amin Maalouf, em obra que seria editada um pouco por todo o mundo – «As Cruzadas Vistas pelos Árabes» – sublinhava que os muçulmanos não falam de cruzadas mas de invasões francesas, isto é, dos «Franj», acentuando que esses dois séculos que moldaram o Ocidente e o mundo árabe determinavam as relações entre ambos. Será que algo mudou desde então?

A avaliar por alguns dos compêndios onde crianças portuguesas, desde os nove anos, aprendem hoje algo sobre as invasões árabes, a Reconquista e os Descobrimentos, está tudo na mesma. Repare-se nestas «pérolas» achadas num dos livros adoptados nas escolas: «O Deus deles era Alá. Pretendiam conquistar o Mundo, no sentido de obrigar todos a adorar Alá» (invasões árabes). «Nobres vindos de várias partes do Mundo ajudaram os Reinos Cristãos nas lutas pela fé Cristã» (Reconquista). «Surgiu de novo no coração dos Portugueses o desejo de aumentar o Reino e levar a fé (os ensinamentos de Cristo) a outras paragens» (Descobrimentos). Eis os nossos meninos bem preparados – se os professores ajudarem e os pais, em casa, ficarem mudos –, para apoiar sem reservas as cruzadas contra afegãos, iraquianos ou iranianos, para aplaudir Bush II e, até, para «abençoar» o Papa se este conceder indulgências aos guerreiros ocidentais empenhados na «guerra santa» pelo petróleo do Médio Oriente.

Num tal contexto lusitano – e não só – será bem-vinda qualquer obra que de facto não desinforme acerca do Islamismo. É o caso «Maomé – a Palavra de Alá», da autoria de Anne-Marie Delcambre, arabista e especialista da civilização islâmica. Neste livro, magnificamente ilustrado, encontramos não só uma honesta biografia do Profeta como muitos dados fidedignos sobre o Alcorão, as mulheres no Islão, a peregrinação a Meca ou os sunitas e os xiitas – o que significa que ele poderá contribuir para entendermos usos e costumes que, só por não serem os nossos, não são menos dignos de respeito, incentivando a substituição de uma estéril troca de injúrias por um fecundo diálogo.

Maomé não foi, aliás, bem acolhido pelos seus próprios conterrâneos, sendo objecto de múltiplas objecções e zombarias por parte dos árabes politeístas coetâneos, que ridicularizavam a Ressurreição dos corpos e o Juízo Final, elementos essenciais da mensagem que afirmava ter recebido do Deus único. Escreve a autora: «A maior parte das vezes, aliás, não interrogam Maomé, insultam-no. Chamam-lhe adivinho, feiticeiro, poeta. Acusam-no de estar a soldo dos cristãos e dos judeus.» (…) «A Hégira (emigração do Profeta de Meca para Medina, em 622) é um acontecimento capital na história do Islão, pois divide o tempo em duas vertentes. Antes, é a época da organização tribal; depois, abre-se uma nova era, baseada num Islão que tanto é uma mensagem religiosa como a organização de uma comunidade de crentes.»

Instrutivo para os cristãos é conhecer estes versículos do Alcorão: «Jesus, filho de Maria, será ilustre nesta vida e na outra; e estará entre os próximos a Deus. (…) Ele falará aos homens no berço assim como na maturidade, e estará entre os virtuosos.» (…) «Deus lhe ensinará a Escritura, a Sabedoria, a Torah e os Evangelhos.» E as palavras de Jesus no livro sagrado dos muçulmanos: «Eu venho para vós como um sinal do vosso Senhor. Vede! De um pedaço de barro faço-vos a figura de um pássaro. Sopro e isso é um pássaro pela vontade de Deus. Curo os cegos de nascença e os leprosos e faço ressuscitar os mortos, com a permissão de Deus.» Ou, finalmente: «Na verdade, os que crêem, os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus – os que crêem em Deus e no Último Dia e praticam o bem – terão a recompensa junto do seu Senhor. Para eles não há temor.» Não será este um caminho para a tolerância?

Como os católicos romanos, os xiitas consideram o seu pontífice «infalível e impecável»: nada de mais semelhante ao Papa do que o Imã xiita. A infalibilidade faz com que ele não se possa enganar e a impecabilidade garante-o contra qualquer erro. Sendo o depositário do «sentido oculto» dos versículos corânicos – tal como o Papa em relação à Bíblia – o seu papel é interpretar o texto sagrado. Estas duas «Igrejas de autoridade», no seio das quais se é chamado a obedecer cegamente ao guia, em lugar de se recorrer à razão e ao julgamento individual, opor-se-ão sempre às «Igrejas de consenso» (como a sunita ou a protestante), que recusam a ideia de um intermediário entre Deus e os homens e respeitam a liberdade intelectual do crente. Finalmente, será bom salientar que os xiitas toleram mal os seus sufistas, tal como os católicos romanos temem os seus místicos, pois ambos constituem potenciais ameaças à ordem pontifícia estabelecida. Que esperar do confronto entre «verdades absolutas», senão o «milagre» da multiplicação das «guerras santas»?

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Uma melancólica nota final para sublinhar que este livro chama «Corão» ao Alcorão e «Alá» a Deus. É pena, atendendo a que se trata de uma biografia de Maomé, a quem Deus, «Dios», «Dieu», «God », «Dio» ou «Gott» – na língua litúrgica do Islão, o árabe, «Allah» –, teria revelado a sua mensagem, como salienta Suleiman Valy Mamede na edição portuguesa do Alcorão que prefaciou e anotou em 1978. Um sinal de adopção da bizarra lição acima referida, segundo a qual «o Deus deles era Alá»?

Anne-Marie Delcambre, «Maomé – A Palavra de Alá», Quimera, 2003, 160 páginas