Fernando Pessoa crítico de Fátima

António Rego Chaves

Escreve o linguista Jerónimo Pizarro: «Este volume recolhe os textos reelaborados de oito comunicações proferidas no ciclo de conferências ‘O Guardador de Papéis’, no âmbito das celebrações dos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa (1888-2008) que tiveram lugar na Casa Fernando Pessoa.» Assim, a sobrinha, Manuela Nogueira, trata da influência do pensamento de Henrique Rosa (irmão do padrasto do poeta) nas ideias do tio, Steffen Dix do «caso» Aleister Crowley, Rita Patrício das suas opiniões sobre Shakespeare; Ana Maria Freitas apresenta-o como autor de narrativas policiais, Carla Gago estabelece um paralelo entre a biblioteca de Nietzsche e a de Pessoa, da qual também se ocupa Patricio Ferrari, para a relacionar com a génese dos heterónimos; Jerónimo Pizarro e Sara Afonso Ferreira dissertam sobre «A Invenção do Dia Claro», de Almada Negreiros, e a sua tradução para inglês pelo «Íbis», e José Barreto anota e expurga de erros tipográficos o corajoso e notável artigo do escritor sobre «Associações Secretas», publicado em 4 de Fevereiro de 1935.

Refiramos, finalmente, o texto assinado pelo já citado historiador José Barreto, «Pessoa e Fátima – A propósito dos escritos pessoanos sobre catolicismo e política». Especialista da matéria de que se ocupa, o ensaísta, já nos «Encontros de Outono de 2003», em Vila Nova de Famalicão, afirmara: «O estudo do pensamento social e político de Pessoa impõe-se pela qualidade dos escritos, na sua maior parte inéditos, que deixou sobre esta temática – e não apenas porque o reconhecimento póstumo do escritor o consagrou como um dos maiores vultos intelectuais portugueses do seu século.» (…) Considerando Salazar «um caso de «cesarização de um contabilista», (…) «via no integralismo lusitano e nas doutrinas corporativas uma regressão a formas anteriores [medievais] de sociedade». Desiludido pela ditadura militar, que apoiara enquanto a tomou por mero «interregno», acabaria por atacar sem rodeios o salazarismo, apenas um mês depois de galardoado pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) de António Ferro com um prémio atribuído a «Mensagem», obra que João Ameal se atrevera a apresentar como um anúncio profético do Estado Novo. Foi com o referido texto «Associações Secretas», ao manifestar a sua simpatia pela Maçonaria, ainda que não fosse mação, que o poeta rejeitou publicamente a imagem de «profeta» que lhe quiseram colar.

Assinalou ainda José Barreto, nos «Encontros de Outono de 2003», que, devido à sua defesa da Maçonaria, «Pessoa passara a fazer parte da lista negra dos Serviços de Censura: segundo apurou, as referências favoráveis, mesmo puramente literárias, ao seu nome, passaram a ser cortadas pelos censores». Mas o poeta «responde» a Salazar, em 1935, depois de o ditador advogar, na sessão de entrega dos prémios literários do SPN – à qual, aliás, Pessoa, um dos premiados, não comparece –, a imposição de limitações e directrizes aos homens das letras e das artes: «Não sabíamos, ironiza, que a ordem nas ruas, que as estradas, as pontes e as esquadras tinham de ser compradas por tão alto preço – o da venda a retalho da alma portuguesa.»

Em «Pessoa e Fátima», o historiador, depois de relevar o anticatolicismo – não o anticristianismo – do ortónimo, decerto influenciado pelo Antero de «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», escreve: «Pessoa atribuía a decadência de Portugal nos últimos anos à dependência de Roma, à Contra-Reforma, às perseguições da Inquisição, à política inspirada pelo jesuitismo, à opressão do pensamento e ao espírito subserviente e acrítico cultivado pela Igreja.» Chegou a considerar, em 1934, o catolicismo como «a mais intolerante de todas as formas de religião», e declarou, em 1935, que «a Igreja de Roma é o Anti-Homem e a Anti-Nação». Na verdade, «o catolicismo, para Pessoa, como aliás para Antero, não era bem uma religião, mas uma instituição dominadora e opressiva, (‘máquina temerosa de compressão’, chamou-lhe Antero nas ‘Causas da Decadência…’) que comandava as nações a partir de Roma.»

Recorda o autor: «Fátima, muito antes de se tornar, durante a II Guerra Mundial, num ‘haut lieu’ ou lugar profético do anticomunismo católico internacional, começara por ser, principalmente, um lugar profético do anti-republicanismo e do antiliberalismo, ou seja, da luta anti-maçónica.» (…) «Em 1930, de resto, a Rússia continuava ausente dos relatos que a vidente Lúcia até então divulgara sobre as aparições de 1917. Mesmo quando, em 1939, um (…) ideólogo fatimista publica a obra ‘Fátima e a Redenção de Portugal’, é ainda sobre um fundo de satanização do liberalismo, da República anticatólica e da Maçonaria que proclama o triunfo da Igreja e incensa o ‘ressurgimento nacional’ do Estado Novo, associando-os conjuntamente à mensagem profética das aparições da Cova da Iria.»

Fernando Pessoa não abdica do sarcasmo, ao referir-se a Fátima. Eis as suas palavras, em ortografia que livremente actualizamos, sem recurso ao Brasil: «Há em Portugal um lugar que pode concorrer vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas, a preços mais em conta…» (…) «O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto êxtase místico da parte dos hotéis, estalagens e outro comércio desses jeitos – o que, aliás, está plenamente de acordo com o Evangelho, embora os católicos não usem lê-lo – não vão eles lembrar-se de o seguir! Com efeito diz-se no Evangelho, cuidando-se de bens materiais: ‘Buscai-vos o Reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas.’ É certo que quem vai a Fátima não vai lá buscar o Reino de Deus, mas o da Nossa Senhora da região – aquela em que está aberto vinho novo. Deus, como se sabe, já foi substituído, sendo o Céu agora governado em regime soviético. Nossa Senhora – a de Lourdes e (ou) a de Fátima – é (‘place aux femmes!’) Comissária do Povo da Saúde Pública. Daí as curas na policlínica da Cova da Iria.» Comentar, para quê?

«Fernando Pessoa: o Guardador de Papéis», Organização de Jerónimo Pizarro, Texto Editores, 2009, 380 páginas