Um moralista no século XX (Camus)

António Rego Chaves

«Com Camus. Como Aprender a Resistir». Estranho título, este: sabendo-se como se sabe que Albert Camus (1913-1960) foi homem da Resistência em França ao ocupante nazi, o leitor esperará descobrir no texto uma explicação do «como» daquele «aprender». Mas basta encontrar o título do original – «Avec Camus: comment résister à l’air du temps», aliás impresso na 4.ª página desta edição da «Temas e Debates» –, para detectar o simplismo da solução adoptada pela editora portuguesa: esta decidiu não traduzir «à l’air du temps» («à moda do tempo»), ficando-se por um vago e ambíguo «resistir». Mas resistir a quê? A comprar tal livro e a lê-lo?

Adiante. Passemos ao autor, especialmente conhecido por ter sido o fundador, em 1964, do prestigiado semanário «Le Nouvel Observateur» e pela sua interessante autobiografia «Le Temps qui reste» (1973). Amigo de Camus, recorda-nos, neste texto, não apenas a obra, como o homem (tal como ele nascido na Argélia) que marcou de forma indelével a vida intelectual francesa de meados do século XX. Anote-se: fá-lo com afecto e com talento, mas também com indisfarçada parcialidade, ao integrá-lo num contexto onde também sobressaíam um Jean-Paul Sartre, um Raymond Aron, um André Malraux, hoje amigos íntimos, amanhã íntimos inimigos.

Chegamos, então, a Albert Camus. O grande pecado deste livro talvez seja apresentar-nos o Nobel da Literatura de 1957 como um obcecado pelo chamado «totalitarismo» – conceito que o autor, ele sim, obcecado por um «totalitarismo» que nunca define nem analisa, esgrime a torto e a direito, contra nazis, comunistas e integristas dos quatro cantos do mundo, esquecendo (?) a lúcida lição do insuspeito Raymon Aron, ainda hoje um marco da direita conservadora francesa, que recusava «meter no mesmo saco» os regimes hitleriano e estaliniano. Tinha fundadas razões para isso.

Jean Daniel escreve, entretanto, neste ensaio, algumas belas páginas sobre o jornalismo, que foi profissão de autêntico «missionário» para Camus, sobretudo no jornal «Combat», durante a Resistência e após a Libertação, e foi também a sua, dele Jean Daniel, ao longo de uma vida. Nessas páginas nos detemos, em detrimento das que dedica à obra do escritor, a nosso ver carecidas de originalidade; e nesse grande jornalista que afirmou ser o jornalismo «a mais bela profissão do mundo», nesse grande jornalista que combateu «contra a sua época, ou seja, a do colonialismo, dos totalitarismos e do terror», nesse grande jornalista que foi dos poucos, logo em 1945, a indignar-se com a chacina de Hiroxima. Alguém que, colocando incómodas questões éticas, se atreveu a assumir que o intelectual deve ser, antes de mais, «um homem que sabe resistir à moda dos tempos».

De uma perspectiva política, a abordagem da questão da Argélia será talvez a que melhor caracteriza Camus: nem colonialista, nem independentista, e contrariando o «maximalismo» dos «pieds noirs», tal como repudiando o maniqueísmo dos intelectuais parisienses, ousou escrever esta célebre frase, que tanto desagradou a quem condenava a violência institucionalizada do colonialismo, como aos que rejeitavam a ideia de conceder a independência aos povos africanos subjugados pela «metrópole» europeia: «Neste momento, lançam-se bombas sobre os eléctricos em Argel. A minha mãe poderá ir num desses eléctricos. Se isso é a justiça, prefiro a minha mãe.»

Recorda Jean Daniel: «É verdade que, no jornalismo, ele encontrava em primeiro lugar uma comunidade: o trabalho em equipa, a camaradagem do esforço, a intensa cumplicidade artesanal dos construtores, a partilha viril e fraternal das dificuldades. Camus admirara desde sempre os artesãos, os homens de uma profissão, os trabalhadores manuais cujo labor ainda não foi alienado pelas revoluções industriais.» E o autor cita o depoimento de um linotipista ao lado de quem o futuro Nobel trabalhou: «Nós sabíamos que ele adorava a atmosfera da tipografia. Adorava encontrar-se em frente das páginas, das linhas de chumbo. Ele ficava obcecado. É verdade que há naquilo tudo uma espécie de exaltação: o cheiro da tinta, do papel molhado, gostamos de cheirar aquilo como o encadernador gosta de sentir o odor do couro. Camus passava mais tempo na tipografia do que na redacção.»

Talvez só quem tenha vivido essa experiência inesquecível de, uma vez redigida a sua parte de notícias no jornal, terminar com alegria o trabalho diário na tipografia, possa entender as afirmações acima transcritas. Mas está fora de dúvida que elas são genuínas, como genuíno era o orgulho de Camus ao referir-se à sua passagem pelo «Combat»: «Fizemos durante dois anos um jornal de uma independência absoluta e que nunca se desonrou.» E defendia a seguinte prática, sem dúvida escandalosa para qualquer actual devoto do sensacionalismo: «É melhor sermos os segundos a dar uma informação verdadeira do que os primeiros a publicar uma falsa.»

Mais do que de um jornalista, eis, pois, um «solitário mas solidário» moralista – na mais nobre acepção do termo, aquela que se aplica a um La Rochefoucauld ou a um Chamfort –, a remar contra a maré da ocasião, ou seja, contra a prática mais cómoda, contra o que Jean Daniel chama «a moda do tempo». Do seu tempo, sem dúvida, mas também do nosso próprio tempo. Disse Sartre, como ninguém: «Ele representava neste século [XX], e contra a história, o herdeiro actual da longa linhagem de moralistas cujas obras constituem talvez aquilo que de mais original existe nas letras francesas. O seu humanismo teimoso, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate incerto contra os acontecimentos maciços e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela espontaneidade das suas recusas, reafirmava, no coração da nossa época, contra os maquiavelismos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do facto moral.»

Jean Daniel, «Com Camus. Como Aprender a Resistir», Temas e Debates, 2009, 206 páginas