Getúlio Vargas, «madrasta de ricos»

António Rego Chaves

O historiador Robert M. Levine, director de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Miami, poderia sem dúvida ter ido mais longe nesta biografia de Getúlio Vargas (1883-1954). Embora seja justificada a sua preocupação de comparar o regime ditatorial instaurado pelo político brasileiro com a governação democrática de Franklin Delano Roosevelt, e mesmo com as ditaduras de Mussolini, Hitler, Salazar, Franco e Pisudski, a verdade é que faltam neste texto referências aprofundadas aos populismos latino-americanos da época. Omissão embaraçosa sobretudo para muitos leitores europeus, que pouco sabem hoje da Argentina de Juan Perón, do Chile de Carlos Ibañez, da Colômbia de Jorge Eliéser Gaitán, do Peru de Haya de la Torre ou do México de Lázaro Cardenas.

Legislador estadual, membro do Congresso, ministro de Estado, governador, líder revolucionário, presidente interino, ditador, senador e presidente eleito pelo povo, tudo isso foi o gaúcho cuja preocupação básica parece ter sido, entre 1930 e 1954, a industrialização e o desenvolvimento económico do Brasil. Corporativista confesso, parecia acreditar na possibilidade de harmonizar o capital e o trabalho, ainda que dirigisse um país onde os elevados índices de pobreza da maioria e a gritante opulência dos terra-tenentes nunca se tinham encaminhado no sentido de uma justa distribuição da riqueza. Mais pragmático do que ideólogo, Getúlio Vargas foi, no entanto, obviamente influenciado pelo fascismo europeu. Embora tenha sabido lidar com a seca, a energia hidroeléctrica, a melhoria dos portos, a produção de matérias primas, a perfuração dos poços de petróleo ou a construção de estradas, a verdade é que grande parte das promessas que o tornou popular, como o salário mínimo nacional, as pensões de reforma, a protecção no emprego, as indemnizações por despedimento, a proibição do trabalho infantil, a observância do horário legal de trabalho ou a prevenção dos acidentes de trabalho não passou do papel e sempre esteve longe de ser aplicada em todo o imenso país onde a maioria da população vivia da agricultura, era miseravelmente paga e dependia de todo-poderosos «coronéis» que, auxiliados por capangas e exércitos pessoais, a explorava com total impunidade.

O regime de Getúlio Vargas pôs fim à cultura política do período oligárquico da Primeira República (ou República Velha, 1889-1930), mas o seu populismo não soube manter-se sem uma brutal repressão dos opositores, a censura à Imprensa e a «protecção» dos generais golpistas. Na verdade, segundo afirma o autor, «o comando das forças armadas partia do princípio de que podia intervir quando o desejasse, e as elites civis aceitavam o poder moderador dos militares».Terá o ditador pretendido ou sequer estado ao seu alcance tornar-se no «pai dos pobres»? É duvidoso, apesar de todos os seus discursos nesse sentido.

Nacionalista, paternalista e reformista, em Janeiro de 1931, Getúlio Vargas, que tinha sob as suas ordens um chefe de polícia pró-nazi, Filinto Müller, mandou prender, em plena histeria conservadora, milhares de comunistas e confiscou os seus haveres. Inspirado nos corporativismos de Mussolini e Salazar, criou hierarquias simétricas de associações para patrões e trabalhadores, instituindo o Estado como árbitro entre elas. Quanto aos sindicatos independentes, foram encerrados, só sendo admitidos aqueles que davam garantias de abdicar do direito à greve. Aliás, os governantes, ao nomearem líderes sindicais gente da sua confiança, agendavam a seu bel-prazer as reivindicações laborais. O Brasil passou, assim, a ser uma coutada das velhas elites ligadas à oligarquia rural ou às novas indústrias, mas «exibindo um estilo diferente, mais burocrático e mais imediatamente manipulador».

Escreve Robert M. Levine: «A Igreja Católica Romana brasileira desempenhou um papel-chave para que o apoio ao governo provisório se consolidasse.» (…) «Os nacionalistas católicos procuraram mobilizar a opinião pública e ‘recristianizar’ o Brasil, que, desde o começo da República, separara formalmente a Igreja do Estado. Atacavam a Constituição de 1891 por considerá-la ofensiva e ‘atéia’, e insistiram para que Vargas tomasse medidas de apoio à família (e contrárias ao divórcio), à educação religiosa nas escolas e à presença de capelães nas forças armadas. A Igreja brasileira aceitava o corporativismo por considerá-lo coerente com a ênfase que ela própria dava à unidade social em detrimento do conflito de classes, e por ver coerência entre as medidas laborais corporativistas e esse modelo.» Sem perda de tempo, o agnóstico Vargas assegurou o apoio da hierarquia eclesiástica, autorizando a educação religiosa nas escolas públicas pela primeira vez em quarenta anos, permitindo que se pusessem crucifixos em salas de aula e repartições públicas e apoiando a proibição constitucional do divórcio civil. Ruas, praias e até favelas receberam nomes de figuras católicas. E, em 1931, o ditador e todos os seus ministros assistiram à consagração da estátua do Cristo Redentor, no alto do morro do Corcovado…

Intelectuais ajudaram à «festa» clerical: citem-se o nacionalista católico Alceu de Amoroso Lima, o musculado integralista camisa-verde Plínio Salgado, o anti-semita nazi Gustavo (Dodt) Barroso. Quanto a outros – um Graciliano Ramos, um Monteiro Lobato – o seu destino seria o cárcere. Duas instituições acarinhadas pelo Poder – o samba e o futebol – ajudaram a cimentar o mito de Getúlio Vargas como símbolo da Pátria e «pai dos pobres».

Habitação, saúde pública, alfabetização, tudo ia ficando para trás. O país enriqueceu – mas os mais explorados dos seus cidadãos permaneceram na miséria. O suicídio do líder, em 1954, apenas consolidou a lenda: «o pai dos pobres» fora vitimado por militares e por ricos, com o aval do imperialismo dos Estados Unidos. Teria sido realmente o pai dos pobres, ou o apenas o indesejado «padrinho» de uma nova classe em ascensão e a «madrasta» dos ricos oriundos da «República Velha»?

Robert M. Levine, «Pai dos Pobres – O Brasil e a Era Vargas», Companhia das Letras, 2001 (reimpressão), 278 páginas