Milan Kundera («A Arte do Romance»)

Uma «sabedoria da incerteza»

António Rego Chaves

Em obra recentemente divulgada, mas escrita há mais de um século («Mi confesión»), manifestava-se o grande filósofo Miguel de Unamuno contra o «herostratismo». Recordando o tresloucado Heróstrato que, com o intuito de imortalizar o seu nome, deitou fogo ao templo de Éfeso, escrevia: «O meu nome! E que importa o meu nome? Semeio as ideias que me vêm ao pensamento – próprias ou alheias – ao acaso da minha marcha pelo mundo, sem qualquer interesse, e ponho o mesmo empenho numa carta que será inutilizada, não bem lida, do que num escrito público que se arquive e se cubra de pó amanhã num desses cemitérios a que chamamos bibliotecas.»

A questão, para o autor d’ «O Sentimento Trágico da Vida», residia, pois, na divulgação de algo que fosse digno de ser considerado uma ideia ou um conjunto coerente de ideias, não na conquista de qualquer risível «gloríola» («simiesco nome», dizia Alexandre O’ Neil). É certo que mesmo quem troça da «gloríola de aparecer em Estocolmo a bordo de um poema que não chega sequer a Trás-os-Montes» pode não estar isento de vaidade, ambição ou projecto de «vitória», mas não é menos certo que, ao fazê-lo, põe em relevo a (des)ordem estabelecida por academias e outras instituições com frequência ancilosadas e agindo como entronizadoras de ideias feitas.

Ora, talvez o que mais importe neste livrinho de Milan Kundera não esteja nas considerações que faz sobre a sua própria obra mas na divulgação de ideias acerca daquilo que o romance é. Porque há quem, sem ter quaisquer ideias, queira a todo o custo tornar-se conhecido; e há também aqueles que, como o escritor checo, sendo já conhecidos, gostam de «semear» ideias – novas ou velhas, suas ou alheias. Esse o sentido de «A Arte do Romance».

Muito falado no Ocidente, pelo menos desde a edição de «A Insustentável Leveza do Ser», em 1984, o romancista manifesta-se nesta obra, publicada em francês dois anos depois, como um decidido defensor do romance, ainda que ciente das suas fragilidades. E explica por que motivo não crê, na sequência de Hermann Broch, que ele deva desaparecer: «Descobrir aquilo que só um romance pode descobrir, é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.»

Fomos e somos, é certo, inundados por romances «imorais», no sentido em que nada de novo nos dizem sobre a existência. Pelo contrário, repetem sem descanso as mesmas lucrativas banalidades, os mesmos lugares comuns, as mesmas receitas «que vendem», refiram-se elas ao passado, ao presente ou ao futuro das pessoas, das colectividades, dos povos. Importa é publicar algo que agrade a multidões de compradores ávidas de aprender a sonhar… com aquilo que queriam sonhar antes de ler. Quanto a ideias, será melhor nem falar delas: a grande maioria dos «produtores» de romances é capaz de encher centenas de páginas sem abrir caminho a uma só reflexão.

Talvez a questão fulcral posta pelo autor resida em que «estamos longe de fazer do romance a suprema síntese intelectual.» Não que se pretenda transformar o romance em obra filosófica, mas porque não foram ainda mobilizados, «com base na narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem.» Assim, o romance não se quererá converter numa filosofia, mas visará equacionar ou mesmo discutir a existência concreta das personagens.

Escreve Kundera: «O mundo baseado numa única Verdade e o mundo ambíguo e relativo do romance são, cada um deles, feitos de uma matéria totalmente diferente. A Verdade totalitária exclui a relatividade, a dúvida, a interrogação e não pode pois nunca conciliar-se com aquilo a que eu chamaria o espírito do romance.» (…) «As religiões e as ideologias não se podem conciliar com o romance, a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodíctico e dogmático. Exigem que alguém tenha razão: ou Anna Karenina é vítima de um déspota limitado, ou Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado por um tribunal injusto, ou então, por trás do tribunal, está escondida a justiça divina e K. é culpado.» À sabedoria do romance, seja ele de Tolstoi ou de Kafka, chama o ensaísta «sabedoria da incerteza».

Prossegue o autor: «O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: ‘As coisas são mais complicadas do que tu pensas.’ É a verdade eterna do romance mas que cada vez se faz menos ouvir na algazarra das respostas simples e rápidas que precedem a pergunta e a excluem. Para o espírito do nosso tempo é Anna ou então Karenin quem tem razão, e a velha sabedoria de Cervantes, que nos fala da dificuldade de saber e da inacessível verdade, parece incómoda e inútil.» Na verdade, quem está «certo»: Dom Quixote ou Sancho Pança? Talvez nem o cavaleiro nem o escudeiro, talvez os dois, inseparáveis um do outro – e talvez seja o mundo que esteja «errado», porque «exige» ambos.

A conclusão está longe de ser optimista, em parte porque, como denuncia Milan Kundera, que aliás não se atreve a especular sobre o futuro, «o romance (como toda a cultura) está cada vez mais nas mãos dos media» e estes «distribuem ao mundo inteiro as mesmas simplificações e clichés susceptíveis de serem aceites pela maioria». (…) «O espírito do romance é o espírito de continuidade: cada obra é a resposta às obras precedentes, cada obra contém toda a experiência anterior do romance. Mas o espírito do nosso tempo está fixado sobre a actualidade que é tão expansiva, tão ampla, que empurra o passado do nosso horizonte e reduz o tempo ao único segundo presente. Incluído neste sistema, o romance já não é obra (coisa destinada a durar, a ligar o passado ao futuro), mas acontecimento da actualidade como outros acontecimentos, um gesto sem amanhã.»

Milan Kundera, «A Arte do Romance», Dom Quixote, Lisboa, 1988, 187 páginas