Assombroso e bem «espanhol» (Pascal)

António Rego Chaves

Escreveu D. Miguel de Unamuno: «Há poucas almas mais espanholas do que o francês Pascal». Poderia também ter sentenciado algo não muito diferente, mas com inegáveis ressonâncias solipsistas, como por exemplo: «Há poucas almas mais pascalianas do que a minha.» Em qualquer caso – e embora o autor dos «Pensamentos» muito devesse a Montaigne –, ninguém negaria que a família espiritual de Pascal teve indiscutível continuidade num Kierkegaard ou no próprio Unamuno. É certo que as universidades, sempre prestas no decretar do que é e não é digno de ser nelas estudado, se atreveram, enquanto puderam, a não os colocar nos seus lugares de culto, a pretexto de que não teriam criado sistemas filosóficos. Mas, umas mais cedo, outras para não perderem o comboio, lá tiveram de se conformar com a ideia de que a sabedoria tem a ver com as obsessivas «manias» dos poetas, dos teólogos e dos místicos que recusam cingir-se às limitações da lógica, aos ditames da gnosiologia ou aos formalismos da ética, porque erigem em supremo objectivo entender o sentido das suas existências – se é que algum sentido se pode vislumbrar para a vida de seres que, desde o nascimento, se encontram condenados a uma morte absurda.

É sabido que Pascal não concentrou a atenção apenas em temas «existenciais», tendo dedicado grande parte da sua curta estada de 39 anos (1623-1662) ao cálculo integral, ao cálculo de probabilidades e ao cálculo infinitesimal, à «máquina aritmética (antepassada do computador) ou às experiências sobre o vazio. Mas o que ainda hoje perdura é a sua obra filosófica, sobretudo os «Pensamentos» e «As Provinciais». Este último texto, posto no Index logo em 1657 pelo Santo Ofício, defende as teses jansenistas contra as dos jesuítas da época e, quando fala da fé, da graça e da vida eterna, transmite uma reflexão de incomparável profundidade, ainda que vivamente polémica, sobre a predestinação, a liberdade e a condição humana. Menos ou mesmo nada «datados» são os «Pensamentos». Aí, perante o abismo, não há lugar para qualquer espécie de «jogo» de índole científica ou «divertimento» mundano: sentindo a inevitabilidade e a iminência da morte, quase já não sabe senão procurar Deus, o «Deus escondido» que não está certo de encontrar. E descobre-o – ou será que o inventa? – dentro de si, porque «o reino de Deus está em nós». Diz: «Não se pode encontrar Deus se não O procurarmos com todo o nosso coração.» (…) «Há apenas duas espécies de pessoas a quem se pode chamar razoáveis: ou aquelas que servem Deus com todo o seu coração porque O conhecem, ou aquelas que O procuram com todo o seu coração porque não O conhecem.» Repare-se que nos fala do «coração», ou seja, de amor e de caridade, não de sensibilidade ou racionalidade. Por isso se dirige ao «Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob» – e ignora qualquer gélida arquitectura de silogismos engendrada por quaisquer esforçadas artimanhas de filósofos e sábios.

Pascal é um solitário. Solitário perante o Deus que procura, solitário perante o medo e a certeza da morte, solitário mas escrupuloso perante os seus semelhantes: «É injusto que se apeguem a mim.»(…) . «Não estou eu pronto a morrer?» (…) «Sou culpado se me fizer amar e se incitar as pessoas a apegarem-se a mim.» (…) «Não sei quem me pôs no mundo, nem o que é o mundo, nem o que eu próprio sou; estou numa ignorância terrível de todas as coisas; não sei o que são o meu corpo, os meus sentidos, a minha alma e mesmo esta parte de mim que pensa o que eu digo.» Anuncia: «Morre-se só». Mas a sua tragédia é mais intensa: vive só – e na angústia de buscar o absoluto.

Voltaire (1694-1778) foi um dos filósofos que muitos imaginariam incapazes de qualquer espécie de empatia com Pascal – e, no entanto, muito o perturbaram as dúvidas e certezas dos «Pensamentos». Nas «Remarques sur les ‘Pensées’ de M. Pascal» (1734), fez publicar nada menos do que 169 notas críticas. Sintetiza Jean Goulemot: «Pascal fascina e irrita Voltaire. Este admira o talento polémico das ‘Provinciales’ mas, no seu combate contra as religiões reveladas e o fanatismo, (…) considera Pascal como um alvo privilegiado. Descortina um adversário digno de si nesse sábio de génio (…) que faz um uso perverso da razão científica para demonstrar a verdade do cristianismo, para desviar o homem da sociedade civil, incitando-o à renúncia, entregando-o à angústia da sua condição infeliz e reduzindo-o à contemplação e à prece.» É certo que Pascal vivera no século XVII, enquanto Voltaire impulsionava com todas as suas forças, no século XVIII, o Iluminismo. Mas o autor das «Cartas Filosóficas» nunca se conformou com as inovações do «misantropo sublime» que «ensina os humanos a odiar-se a si próprios», enquanto ele, «perigoso» deísta, pretendia levá-los a amarem-se uns aos outros. Claro que, em tal confronto, se existia um pessimista, era Pascal. E a época de Voltaire não é a de Luís XIV (1638-1715) e pressagia já a Revolução Francesa, altura em que as dúvidas metafísicas serão provisoriamente «esclarecidas» pela implacável guilhotina dos novos deuses…

Algumas breves anotações sobre este «dossier»: talvez ele não seja senão uma introdução fácil a Pascal, quando se julga que tudo foi já dito. Não se entende, porém, por que razão, na árvore genealógica da filosofia contemporânea, ninguém sublinha o nome de legítimos herdeiros dos «Pensamentos», como o do Kierkegaard de «Temor e Tremor» ou o do Unamuno de «O Sentimento Trágico da Vida»; depois, e para abreviar, com que fundamento se julgarão alguns arrogantes chauvinistas da «rive gauche» proprietários da «verdadeira alma» de Pascal, se as suas raízes se encontram nos Evangelhos, num São João da Cruz ou numa Santa Teresa de Ávila, aliás até mais profundamente implantadas do que em Epicteto, em Santo Agostinho ou, mesmo, em Montaigne? Mas, afinal, talvez o que hoje mais importe, como disse Charles Dantzig, é que por detrás da filosofia de Pascal «se vê sempre um homem, e que esse homem é assombroso». Assombroso e bem «espanhol», na quixotesca provocação de Unamuno.

«Le Magazine Littéraire», «Pascal, miroir de notre vie», Novembro de 2007, 98 páginas