Traudl Junge: «Jawohl, mein Führer!»

António Rego Chaves

Atentos comentadores, mais ou menos argutos, têm-se interrogado, nos últimos meses, acerca de Adolf Hitler. Isto porque um filme de Oliver Hirschbiegel, inspirado numa obra do historiador Joachim Fest e nas memórias de uma ex-secretária do ditador, Traudl Junge, já classificado – em nosso entender, bem – como «ambíguo», «inquietante» e mesmo «pernicioso», despertou as consciências para o «heróico» suicídio do autor de «Mein Kampf» e para a «rendição incondicional», a 8 de Maio de 1945, da Alemanha nazi aos Aliados.

A superprodução alemã intitula-se «A Queda» – «pormenor» grotesco se tivermos presente a personagem de ressonâncias bíblicas João Baptista (Clamence), «Elias sem Messias», criada por Albert Camus, escolha obscena para quem evocar o mítico «Paraíso» de que Adão e Eva foram expulsos, decerto só imaginável nos antípodas do III Reich. Trata-se, nas palavras acutilantes do historiador Marc Ferro, de «um filme sobre Hitler e os alemães sem o nazismo», que «oculta as chacinas dos sérvios, dos ucranianos, dos ciganos, dos homossexuais e dos deficientes». Acrescente-se: o filme também ignora as perseguições, torturas e assassínios de que foram vítimas milhares e milhares de doentes mentais, sindicalistas, protestantes, católicos, socialistas e comunistas. E só de raspão nos faz recordar os seis milhões de judeus exterminados no genocídio que é uso denominar «Holocausto».

Todas as câmaras incidem sobre o megalómano e «carismático» Adão, a «sua» Eva (Braun) e os seus acólitos, incitando-nos à desculpabilização do «bom povo alemão». Ora, é precisamente neste povo, humilhado e empobrecido pela derrota na I Guerra Mundial e pelo tão implacável quanto imprudente Diktat de Versailles (1919), que será necessário concentrarmos a nossa atenção se quisermos entender o fascínio que Hitler exerceu sobre a grande massa da população que o elegeu, apoiou e idolatrou «até ao fim». O livro de Traudl Humps Junge (1920-2002) ajuda-nos involuntariamente neste sentido, porque a jovem que durante dois anos e meio foi uma das secretárias do ditador nem entendia nada de política, nem perfilhava o anti-semitismo do «chefe», nem aderiu nunca ao nacional-socialismo. O que não a impediu de se transformar, pouco a pouco, em alguém capaz de repetir, a todo o momento, em quaisquer circunstâncias, «Jawohl, mein Führer». Em suma, poderá ser encarada como amostra representativa de grande parte do povo alemão nesta época negra da sua história.

É bom, pois, que nos debrucemos sobre o que isto quer dizer, tendo presente que Hitler «comprou» milhões de alemães fazendo-os beneficiar dos bens espoliados aos judeus e da pilhagem dos territórios ocupados durante a sua «cruzada» pela conquista de «espaço vital» para a Alemanha: ignorância, seguidismo, medo, subserviência, oportunismo, passividade, apatia, inércia, indiferença, resignação? Repare-se: estão em causa 50 milhões de mortos civis e militares – 20 milhões dos quais soviéticos –, está em causa a barbárie nazi.

Ora, «Até ao Fim» quase nada nos diz sobre Hitler que não soubéssemos já, a não ser o que ele comia ou deixava de comer, o que bebia ou deixava de beber, o que gritava ou deixava de gritar, à mistura com as habilidades – e até a vida sexual – da sua idolatrada cadela Blondi. Mas alerta-nos para algo importante do ponto de vista do sociólogo, do historiador, do psicólogo, do politicólogo, do cidadão do mundo. Como foi possível servir e gostar de servir tal senhor? Repare-se, Traudl Humps não era, na altura em que procurou e aceitou um emprego na chancelaria do III Reich, nos finais de 1942, alguém comparável ao filósofo Martin Heidegger, ao jurista Carl Schmitt, aos cineastas G. W. Pabst e Leni Riefenstahl. Apenas uma simplória «ariana» de 22 anos à procura de emprego, ansiosa por escapar à «mediocridade» de obscura amanuense e por «vencer na vida». Mas será que os eminentes intelectuais citados não pretenderam também, cumpliciando-se à sua maneira com o nazismo, «vencer na vida»?

«Não podemos corrigir a nossa biografia a posteriori, temos de conviver com ela. Mas podemos corrigir-nos nós mesmos. Não esperem sempre uma a expiação pública. Existe uma vergonha muda, que é mais eloquente do que qualquer discurso – e por vezes mais sincera.» (Rainer Kunze). A vergonha, para Traudl, derivaria, na mais cândida das hipóteses, de tudo ter olhado sem nada ousar observar à sua volta, até o «pogrom» de 1938, as pilhagens de que foram vítimas os judeus, as sinagogas incendiadas, as detenções maciças de pessoas cujo único crime seria pertencerem a uma suposta «raça inferior», os campos de concentração, as execuções. E, mesmo depois de se encontrar ao serviço de Hitler e de se casar, em Junho de 1943, com Hans Hermann Junge, ordenança do Führer e membro da Waffen-SS, nada saberia dos crimes do nazismo, mantendo-se virginalmente «apolítica»? Será verosímil, mas não parece fácil acreditar em tão grande e tão persistente «distracção»… Sobretudo vinda de alguém que ouviu Hitler matraquear com inequívoca convicção aos que o rodeavam a bondade da «lei do mais forte» que – cruel ironia –, viria a ser aplicada à própria Wehrmacht, esmagada sem remissão pelas «bestas asiáticas» do Exército Vermelho.

Tarde, talvez tarde de mais, a autora percebeu que nem todos os alemães tinham colaborado com o opressor e que até uma jovem um ano mais nova do que ela, Sophie Scholl, fora executada em 1943, acusada de distribuir panfletos antinazis, no momento exacto em que a sua carreira como secretária do ditador estava a começar. Foi então que a idade deixou de lhe servir de álibi e teve de se encarar de frente, depois de «longas fases depressivas, estadas em clínicas e conversas terapêuticas». E acabará por confessar, num gemido de remorso: «Hoje, o meu luto é duplo: pela sorte dos milhões de pessoas chacinadas pelo nacional-socialismo. E pela rapariga Traudl Humps, a quem faltaram a determinação e a visão para contestar no momento certo.»

Traudl Junge, «Até ao Fim», Dinalivro, 2003, 241 páginas