Louvor e assunção da dúvida (Deus e a Fé)

António Rego Chaves

Desengane-se quem pretenda encontrar neste fascinante diálogo entre o teólogo jesuíta González Faus e o filósofo socialista Ignacio Sotelo uma exaustiva discussão acerca do bem e do mal. Muito embora tal possa ser sugerido pelos dizeres inseridos na capa do livro – «Se Deus existe, como explicar o mal? Se Deus não existe, donde vem o bem?» –, trata-se de mais um diálogo entre um crente e um não crente sobre Deus, Jesus e os humanos. Limitados pelo espaço e pelo tempo, os interlocutores cingem-se aos «prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência», preocupação que tem obcecado inúmeros filósofos e teólogos ocidentais, embora sem perspectivas de respostas não-kantianas determinadas por inequívoco bom-senso.

Para o jesuíta, a fé «é um dom, mas um dom intrinsecamente comunitário, ainda que, ao mesmo tempo, só possa dar-se filtrado por limitações individuais». A fé possuiria então um carácter «eclesial» (entenda-se o termo sem apelar para qualquer eminente purpurado), ou seja, «tem uma dimensão social, pública, e não pode ser relegada para a sacristia particular». E eis o que poderá surpreender alguns, soando como soa a louvor e assunção da dúvida e vindo de quem vem: «Julgo que (…) o diálogo interior pode dar-se de mil maneiras no não-crente quando dialoga com um cristão. Onde o crente tem uma porta mal fechada, que nunca conseguirá trancar, e que deixa passar esse ar que lhe diz ‘talvez não’ ou ‘não tomes isso a sério’, o descrente tem a mesma greta que deixa passar outro rumor: ‘talvez sim’… E creio que isso torna o diálogo interior enormemente necessário, bem para lá das controvérsias passadas. Simplesmente porque sem diálogo toda a fé correria o risco de degenerar em mero farisaísmo, e a não fé estaria ameaçada de transformar-se em idolatria de si.»

Quanto ao agnóstico, não se impede de comparar o que chamaríamos «catolicismo real» – no sentido em que falamos de «socialismo real», por oposição a «socialismo ideal» – com um utópico «catolicismo ideal». De facto, para a geração espanhola que viveu na carne o fascismo, será penoso conceber uma fé abstracta, etérea, dissociável da guerra civil que transformou em mártires centenas de milhares de crentes e descrentes. Escreve: «A ignorância em matéria de religião, circunscrita a novenas, rosários, vigílias, tríduos, primeiras sextas-feiras e outras devoções, era imensa na Espanha católica de Franco.» (…) «O nacional-catolicismo vacinou a maior parte dos meus amigos contra qualquer tipo de preocupação religiosa. Não é o menor mérito de Franco ter conseguido que a Espanha tenha deixado de ser católica, pelo menos do modo tradicional que durante séculos tinha obstaculizado, quando não impedido, a modernização. O catolicismo hoje já não é o estorvo que foi durante séculos, e isso permite aproximar-me sem tantos preconceitos, disposto até a dialogar com ele.»

Só aos indiferentes não interessará este livro. Quanto aos outros – teístas, agnósticos, ateus – se os seus pensamentos não cristalizaram em certezas impermeáveis a quaisquer novos factos, afectos ou ideias, decerto se sentirão inclinados a jogar este jogo em que, como diz Sotelo, «não deve haver vencedor, porque ou somos todos ganhadores ou não valeu a pena». Que quer isto dizer? Sublinha Faus que é enorme a influência da nossa história no que somos: «Quase tudo o que pensamos – por vezes julgo que tudo – recebemo-lo do acervo comum que constitui uma cultura, de modo que quanto mais ampla e fundamental for a pergunta que fazemos, maior será a nossa dependência do património colectivo». Relativizadas assim todas as respostas às mais graves interrogações que possamos conceber, tornar-se-ia tão inadequado falar de «teologia científica» como de «filosofia científica» ou de «socialismo científico».

Teremos então de perfilhar «um cientismo propenso a canonizar conhecimentos altamente questionáveis», eliminando o fecundo desassossego de tantos pensadores, poetas e artistas que prezamos, prescindindo da «hipótese de Deus?» Sustenta o jesuíta: «1. Deus não pode ser demonstrado. 2. Se o Deus cristão existisse, seria uma ‘boa notícia’. 3. É mais importante amar a Deus do que acreditar na Sua existência. 4. A pergunta decisiva não é só ‘se’ Deus existe, mas ‘qual’ Deus existe.» Situado nestes termos o diálogo, o filósofo passa a tematizar as relações entre razão e fé. Impossível acompanhá-lo nesta página, como impossível será seguirmos aqui a discussão suscitada por outras quatro teses de González Faus, a saber: «1. Jesus não se dedicou a dar aulas sobre Deus, mas a anunciar uma situação de liberdade e de fraternidade e igualdade. 2. Dentro desse ser um ‘Deus dos homens’, e como seu fundamento, revela-se em Jesus que é ‘um Deus dos pobres’. 3. O Deus que se revela em Jesus é ‘um Deus de condutas’ e não de fórmulas verbais. 4. A razão destes dois pontos (2 e 3) não é uma mera imposição ou imperativo ético, mas uma experiência de Deus muito diferente: não do Deus ‘legislador’ da razão, mas do Deus Pai.» Anotemos a resposta do filósofo: «A única coisa que me cabe dizer é que o Jesus que tu apresentas, que é o que encontro nos Evangelhos, o Jesus defensor dos pobres, que se distancia dos ricos, o que se liga aos de baixo, mendigos, publicanos, prostitutas, o Jesus sempre em más companhias, o Jesus das bem-aventuranças, o que salta para fora das regras formais e critica os fariseus, apegados aos ritos sem o amor cabal do samaritano, esse Jesus que não tolera a hipocrisia farisaica tem pouco a ver com o que os fariseus dos nossos dias pregam aos domingos na missa e se ensina nas aulas de religião dos colégios católicos.» (…) «O cristianismo, por mais depurado que tenha ficado das suas raízes revolucionárias, não cessou nunca de constituir na cultura europeia um depósito de insurreição.» Indício de ruptura? Nada disso. Iluminemos um aceno do agnóstico, logo «abençoado» pelo jesuíta: «A dúvida é o espaço partilhado onde nos encontramos todos.» E eis justificada a necessidade deste diálogo exemplar alicerçado na tolerância.

J.I. González Faus e Ignacio Sotelo, «Deus e a Fé – Razões do crente e do não crente», Casa das Letras, 2005, 334 páginas