Dante e a honra de Boccaccio

António Rego Chaves

Uma biografia de Dante (1265-1321) assinada por Boccaccio (1313-1375) e traduzida para Português, ainda que o tradutor insista sempre em escrever «Toscânia» em vez de Toscana e com introdução e posfácio tão anónimos quanto já vistos? É, apesar de tudo, uma boa notícia. Diga o que disser Boccaccio sobre Dante, torna-se leitura obrigatória. Podemos perguntar-nos o que teriam em comum o autor do licencioso «Decameron» e o da cristianíssima «Commedia». Nada, pouco, muito? Muito é a resposta exacta para os últimos anos da vida de Boccaccio. Basta recordar que este, repudiando dúvidas e tendências da juventude, recebeu ordens menores cerca de 1360. Era homem de grande humildade intelectual e o seu culto de Dante – e do seu amigo Petrarca – muito diz sobre a nobreza do carácter de um escritor que, incapaz de sentir inveja, nunca cessou de admirar aqueles que tinha pelos dois maiores poetas italianos do seu tempo.

Quem escreveu a «Commedia» foi, no dizer de Carlyle, «o porta-voz da Idade Média». Explicitou Fidelino de Figueiredo: «Para Dante o meio formador é o complexo tecido de circunstâncias que lhe constituíram a forte personalidade: a educação segundo o conceito cavalheiresco medieval, a sociedade florentina, as lutas truculentas da política, os ódios de Guelfos e Gibelinos, a sua passagem pelo governo, logo expiada por um exílio amargo e sem fim, o asilo de Ravena, a prodigiosa arquitectura da filosofia escolástica, dialéctica amplificadora de Aristóteles e das Sagradas Escrituras, tudo lhe guarneceu a inteligência de ideias, de emoções e de inquietação julgadora.»

Dante mergulhou fundo em Virgílio, Horácio e Ovídio, meditou com Cícero, Séneca e Boécio, estudou Alberto Magno e Tomás de Aquino. Apoiado numa sólida cultura teológica, tomou partido pela independência do Império em relação ao Papado e denunciou a intromissão deste em assuntos demasiado terrenos para quem se deveria cingir ao domínio do espiritual. Com efeito, no «De Monarchia» procura provar que a autoridade do Império deriva directamente de Deus, sem intervenção de quaisquer intermediários, ministros ou vigários, como reivindicavam os chamados «sucessores de Pedro». Pagou o atrevimento a título póstumo. O Cardeal de Poggetto, legado do Papa João XXII na Lombardia, apreendeu o tratado e condenou-o à fogueira, por conter matéria herética. Além disso, pretendeu também queimar o cadáver do autor, «para eterna infâmia e vergonha da sua memória.» Boccaccio, depois de anotar que há «homens maus e perversos nomeados para altos cargos e destacados gabinetes, sendo-lhes atribuídas recompensas, enquanto homens bons são exilados, transformados em párias e humilhados», diz de Dante: «Ao invés de ser recompensado, foi alvo de injusta e apressada sentença, perpétuo desterro, alienação da propriedade da família e, se tal pudesse ser conseguido, o manchar da sua gloriosa fama com falsas acusações. Os rastos frescos das suas deambulações, os seus ossos enterrados noutro país, os seus filhos dispersos pelas casas de outros, ainda constituem prova parcial disso mesmo.»

Foi filósofo, teólogo, poeta. Mas, acentua o seu ilustre primeiro biógrafo, «quase desde o início da sua vida até ao dia da sua morte, Dante foi presa da feroz e insuportável paixão de amor». De facto, quando se apaixona por Beatriz – que percorrerá grande parte da sua obra, da «Vita Nuova» à «Commedia», passando por «Il Convivio» –, ela tem apenas oito anos, ele… nove. Prossegue Boccaccio: «Apesar de ser apenas um rapaz, recebeu a sua imagem no coração com tamanho afecto que desde esse dia não mais a esqueceu enquanto viveu.» (…) «A chama do seu amor aumentou com a idade, a ponto de nada mais constituir prazer, repouso ou conforto para ele senão vê-la.» (…) «O seu amor era o mais virtuoso, nunca se evidenciando, por olhar, palavra ou sinal, qualquer apetite deliberado no amante ou naquela que ele amava. Isto não constitui pequena maravilha no mundo de hoje [atenção, «o mundo de hoje» era o do século XIV e quem escreve esta frase é o autor do «Decameron»!] de que todo o prazer virtuoso fugiu, onde se enraizou o costume de se ter o que se deseja disponível à luxúria, mesmo antes de se decidir amar, a ponto de se ter tornado um milagre e a mais rara das coisas que alguém possa amar de outra forma.» Mas Beatriz morre antes de completar vinte e quatro anos e «a sua partida deixou Dante em tamanha tristeza, desgosto e lágrimas que muitos dos que lhe eram mais próximos, tanto parentes como amigos, acreditaram que o seu destino seria a morte.»

Casado, como era usual na época, com mulher que não elegera por razão de amor e feito pai de filhos, Dante ver-se-ia constrangido a cuidar da família, sendo-lhe impossível dedicar-se por inteiro à filosofia e à teologia. Petrarca – na linha de Heloïsa numa célebre carta a Abelardo, quando o alerta para a impossibilidade de conciliar o matrimónio com a filosofia e a teologia, aliás de acordo com a lição de Teófrasto, Cícero, Séneca, São Paulo e São Jerónimo –, sentencia: «Os filósofos que deixem o casamento aos ricos e aos tolos, aos nobres e aos cidadãos comuns, e que encontrem deleite na filosofia, uma noiva muito melhor que qualquer outra.» Dessa perspectiva, a saída forçada de Florença foi para ele uma bênção: «Nenhum desejo amoroso, nenhuma lágrima de desgosto, nenhum cuidado doméstico, nem a tentadora glória de um cargo público, nem o miserável exílio ou a intolerável pobreza tiveram o condão de alguma vez desviar Dante do seu principal intento – os seus sagrados estudos.»

Boccaccio dedica um pequeno capítulo às «qualidades e defeitos de Dante», e explica por que honrado motivo o faz: «Se me calasse acerca de qualquer coisa que nele não fosse louvável destruiria a fé do leitor nas virtudes louváveis que já realcei.» Em França, Beaumarchais «traduzirá» esta convicção de forma lapidar, que o grande diário «Le Figaro» transformará em sua bandeira, fazendo-a ainda hoje imprimir ao alto da sua primeira página: «Sans la liberté de blâmer il n’est point d’éloge flatteur.»

Giovanni Boccaccio, «A Vida de Dante», Planeta Editora, 2007, 189 páginas