O Portugal de amanhã (Guilherme d'Oliveira Martins)

António Rego Chaves

O pretexto para este novo livro de Guilherme d’Oliveira Martins, depois de «Portugal – Identidade e Diferença», foi a nova Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural, assinada em Faro no mês de Outubro de 2005. Acrescente-se que o autor presidiu no Conselho da Europa, em representação do Centro Nacional de Cultura, ao grupo que elaborou a referida Convenção-Quadro. As primeiras cinquenta páginas da obra são, pois, consagradas à complexa problemática em causa.

Temas de cultura portuguesa cobrem as restantes páginas de «Património, Herança e Memória» e constituem, a nosso ver, a razão determinante que poderá levar um conjunto alargado de leitores a entregar-se sem reservas ao prazer da leitura. Fixemos, no entanto, esta noção: «O Património cultural está, cada vez mais, na convergência dinâmica entre a herança material e imaterial, representada pelos monumentos e pelas tradições, pelos costumes e pelas mentalidades, de um lado, e a criação cultural contemporânea, a inovação e a modernidade, de outro.» E relevemos que o novo conceito de Património cultural se encontra «orientado para as pessoas, mais do que para os objectos, de acordo com o entendimento da cultura como criação humana». Não menos pertinente será acentuar, como também faz o autor, que, perante o risco de atitudes fanáticas, «temos de estar de sobreaviso e impedir a criação de condições favoráveis à radicalização, desde a exclusão social até à intolerância cultural». Há, pois, «uma exigência de sabermos compreender pondo-nos na posição do outro», sem a qual não será possível a serena diversidade cultural e o autêntico pluralismo no espaço europeu. Pena que uma coisa seja a realidade, outra a norma jurídica, nacional ou internacional: o fosso que as separa implica distinguir «guerra» e «paz»… Guilherme d’Oliveira Martins oferece-nos a seguir breves ensaios sobre a língua e a cultura portuguesas, o «seu» Algarve, Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho, tal como recensões críticas de obras como «Luzes e Sombras no Século XIX», de Machado Pires, «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», de Antero de Quental, «Consciência Histórica e Nacionalismo», de Sérgio Campos Matos, «Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade», de Eduardo Lourenço, «A Pesca à Linha», de António Alçada Baptista e «Portugal e os Portugueses», de D. Manuel Clemente. Nestes textos reside, em nossa opinião, o maior interesse deste livro, pelo menos para quem pretende reflectir, hoje, sobre Portugal.

Estávamos certos de que desta obra não estaria ausente pelo menos uma referência ao controverso Acordo Ortográfico de 1990, cuja entrada em vigor, segundo é público, está prevista até ao final do ano. Ei-la: «O futuro ligará meios tradicionais e novidade tecnológica. Daí que o novo acordo ortográfico não possa ser visto como harmonizador e empobrecedor, mas como um desafio para a diversidade e para o pluralismo dos sentidos e da criação, no espaço de uma língua de mais de duzentos milhões de falantes, que alberga várias culturas em todos os continentes. Do que se trata é de procurar comunicar melhor num horizonte alargado de diferenças, a partir de identidades abertas e complexas. E as diferenças tornam-se universais, porque são o sinal autêntico da vida das pessoas…»

Algumas páginas antes encontra-se a seguinte citação de Bernardo Soares, retirada do «Livro do Desassossego»: «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»

Verdade é que, como lembrou o linguista e filólogo António Emiliano num opúsculo publicado em 2008, Fernando Pessoa também escreveu o seguinte: «A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto, um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito.» Guilherme d’Oliveira Martins não entra aqui na polémica, limitando-se a indicar-nos algumas pistas capazes de nos ajudarem a pensar o futuro da nossa língua.

Fica-nos a noção, devido às numerosas referências à Geração de 70, que o autor entende que, se existe hoje o que poderíamos chamar um «problema português», é aquele que foi detectado nas Conferências Democráticas do Casino, nomeadamente por Antero de Quental em «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares». Manietado pelo Catolicismo do Concílio de Trento, pelo Absolutismo e pelas imposições das Conquistas longínquas, Portugal afastou-se da Europa «pensante e industriosa». «Europeizar Portugal» constituiria, pois, nos últimos decénios do século XIX, a grande questão posta às cabeças pensantes abertas ao que se passava fora do País.

Guilherme d’Oliveira Martins apresenta nos seguintes termos a visão crítica dos intelectuais da Geração de 70: «Conformismo, nunca; fatalismo do atraso foi sempre um inimigo jurado, desde Coimbra; optimismo lírico, também não, basta ler exactamente as últimas páginas de Eça. Sentido crítico, sempre, porque entendiam que as civilizações só se afirmam e sobrevivem se alimentarem no seu seio a capacidade renovadora da criatividade incómoda. E a distância? É um dos grandes mistérios da geração. A distância entre Portugal e a Europa culta e desenvolvida é uma preocupação desde os primeiros passos». (…) «Portugal é um país ignorante, mergulhado no obscurantismo da alma, e apenas guiado pelas perfeições do instinto? Eis o ponto fundamental.» Ontem, hoje…amanhã?

Guilherme d’Oliveira Martins, «Património, Herança e Memória», Gradiva, 2009, 191 páginas