Filosofia,sempre!

António Rego Chaves

Escrevia Eduardo Prado Coelho em 24 de Abril – 24 de Abril, precisamente um dia antes do 33.º aniversário do 25 de Abril, terá sido por mero acaso? – : «Parece que, por critérios que têm a ver com a ideia de que o país precisa de se desenvolver, a Filosofia tende a desaparecer dos currículos das universidades. Logo a Filosofia, essa disciplina que deveria surgir como a rainha das disciplinas, aquela que as deveria de certo modo organizar, estabelecendo os nexos, as transversalidades, as forças ocultas, os veios essenciais.» Acrescentava: «Ou encaramos os problemas segundo uma perspectiva meramente economicista (o que, infelizmente, acontece com demasiada frequência no âmbito do Partido Socialista), ou então tem de se ter em conta a própria lógica do sistema universitário, onde é difícil imaginar a ausência da Filosofia.» E advertia os responsáveis pela tentativa de atropelo: «Uma escola não pode ser apenas uma máquina produtiva, tem de estar ligada a uma visão do mundo, e, se essa visão do mundo é de esquerda, tem de assumir aquilo que essa esquerda tem como tradição.»

Delicado em excesso, Eduardo Prado Coelho não foi mais longe. Poderia ter dito que estávamos – e íamos continuar a estar – governados por uma pseudo-esquerda semi-analfabeta, embora salpicada de alguns «eminentes» catedráticos; poderia ter sugerido que não se pode ser grande médico, antropólogo, matemático ou físico sem manter um diálogo permanente com o saber filosófico; poderia ter lembrado, enfim, que existem valores bem mais altos do que os da imediata empregabilidade. Não o quis fazer. Talvez tenha evitado a violência verbal para que ainda lhe fosse possível levar a água ao seu moinho, isto é, para uma vez mais ser útil à cultura dos portugueses. Perdeu essa batalha, aliás também travada por individualidades como Maria Filomena Molder, Luís Crespo de Andrade, Marcelo Rebelo de Sousa, António Barreto, João Lobo Antunes ou José Gil. Perdeu essa batalha – e talvez todos nós, como ele indignados, em silêncio ou entre pragas, tenhamos perdido a guerra da liberdade de pensamento.

Conviria, pois, que os nossos ministros de primeira e de segunda lessem este livrinho de Roger Scruton, destinado a «pessoas inteligentes»: não porque todos eles façam parte da elite destinatária da obra, mas porque, embora saltando este ou aquele capítulo, poderiam aperceber-se rapidamente, em duas ou três horas, de que a Filosofia sempre serve para alguma «coisinha», até mesmo para várias «coisinhas» políticas.

Num prefácio e doze capítulos (Porquê, Verdade, O Demónio (referência ao arreliador «génio maligno» concebido por Descartes), Sujeito e Objecto, Pessoas, Tempo, Deus, Liberdade, Moral, Sexo, Música, História), o autor pretende ser fiel à «antiga promessa da filosofia, que é a de nos ajudar, mesmo se indirectamente, a viver bem e sabiamente». Numa «última tentativa de «re-encantar o mundo» («é como se o mundo fosse dividido em dois: o mundo fechado e iluminado do eu; e o território desconhecido que jaz a toda a volta na escuridão»), o docente britânico tem bem presente o facto de não ser mais do que um solitário «ilhéu» perante o Continente de Espinosa, de Kant, de Hegel e do «quase» inglês Wittgenstein – e fala-nos de Deus, de fé e de religião. Lamenta-se: «Os filósofos anglo-americanos escrevem apenas uns para os outros, em jornais que poucas pessoas inquietas com a brevidade da vida são tentadas a ler.» Diagnostica o mal: «A nossa necessidade filosófica mais urgente, parece-me, é a de compreender a natureza e o significado da força que outrora manteve o nosso mundo unido, e que está agora a perder o seu controlo: a força da religião.» Sentencia: «É de ideias religiosas que o mundo humano, e o sujeito que nele habita, são feitos. E é o resíduo espiritual do sentimento religioso que provoca os nossos problemas filosóficos mais intratáveis.» Conclui: «A fé é um triunfo supremo sobre a nossa solidão transcendental: sem ela, ou fazemos dessa solidão uma virtude, como fez Nietzsche, ou vivemos num nível menos exaltado. O anúncio da morte de Deus é menos uma declaração sobre Deus, do que uma declaração sobre nós.»

Pergunta: «Pode a filosofia restituir a fé na liberdade humana, quando a ciência parece dispensá-la tão completamente? Acredito que a resposta é sim.» Pessoa, liberdade, direitos, deveres, responsabilidade, justiça, caridade ou solidariedade, transparência das relações interpessoais, «encontro com o sujeito num mundo de objectos», coragem, lealdade, prudência, sabedoria, temperança, piedade, ou seja, respeito pelas coisas sagradas – tudo isso nos vêm ensinando muitos grandes filósofos desde que o mundo é mundo. Aplicamos a lição, na nossa prática diária? Uns sim, outros não. Que os últimos não sirvam de pretexto para o banimento da Filosofia do ensino, ou da vida afectiva e profissional. Atentemos na moral sexual, no enigma do sujeito, na sua relação com o espaço e o tempo. E nesta tão irónica quanto seca pergunta de Scruton: «Poderemos avançar pela estrada do indizível? E se sim, por que meio de transporte?»

Deixemo-nos guiar pelo Rainer Maria Rilke dos «Sonetos a Orfeu»: «As palavras ainda correm suaves para o indizível./ E a música, sempre nova, de palpitantes pedras/ Constrói em espaço inútil a sua casa divina.» Comenta o ensaísta: «Está-se, por assim dizer, a um pequeno passo da eternidade a partir do tempo ideal da música.» […] «O filósofo deve agora aceitar o conselho de Wittgenstein, e confiar ao silêncio aquilo de que não pode falar. Deve arrepiar o caminho para o domínio do tempo e dos objectos – o domínio no qual o nosso pensamento surge e para o qual o nosso pensamento tende.» […] «As respostas filosóficas podem não ser eternas; mas as questões recorrem. E é isso que devemos esperar.»

Julgo que Eduardo Prado Coelho gostaria de ter lido estas citações, tendo presente que o misterioso professor de Cambridge de origem austríaca muito falou, nos seus belos, nada académicos e dilacerantes diários íntimos, do Cristo de quem dizia não podermos falar…

Roger Scruton, «Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes», Guerra e Paz, 2007, 204 páginas