O defunto «Estado Novo» (2)

António Rego Chaves

Escreve Reis Torgal, quase a terminar esta sua obra: «Considero que a reprodução ideológica foi mais importante para a manutenção do regime [salazarista] do que a repressão. Por isso, entendo que quando essa repressão perdeu a força e se impôs, apesar de tudo, uma ‘nova cultura’ e uma ‘nova intelectualidade’ de esquerda, abriram-se as portas para que o regime caísse.» Daí que, ao longo de todo o segundo volume de «Estados Novos, Estado Novo», assistamos a um desfile quase interminável de altos responsáveis pela propaganda, a começar por António Ferro, apostados em impor os valores antidemocráticos, anti-republicanos e anticomunistas hasteados pela defunta Ditadura.

Os que, em Portugal, nos começos do século XX, deram início à «patrioteira» e criminosa tarefa de abafar e liquidar a «revolução cultural» europeísta operada pela Geração de 70, iriam combater sem tréguas o individualismo, o racionalismo, o materialismo, o ateísmo e o internacionalismo do que Léon Daudet chamou «O Estúpido Século XIX», tudo isso em nome da fé, da Igreja Católica, da intuição bergsoniana, do nacionalismo, da «raça». No Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), com Salazar, Gonçalves Cerejeira ou Pacheco de Amorim, no Centro Católico Português, na Cruzada Nacional Nun’Álvares ou no Integralismo Lusitano, tratava-se, sobretudo, de fazer ressuscitar as mais retrógradas características da sociedade portuguesa, pondo fim à pretensa «barafunda» iniciada com a monarquia constitucional e continuada pela Primeira República.

«António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira ou Augusto Gil serão constantemente glosados pelos intelectuais do Estado Novo e farão parte obrigatória das suas colectâneas de textos e das suas ‘bibliotecas populares’», salienta o historiador, que acrescenta: «Guerra Junqueiro e Gomes Leal, não na sua veia satânica mas na sua directriz crente e regionalista, também farão parte desse património, assim como Oliveira Martins, Teófilo ou Antero, depois de sujeitos a um processo de ‘conversão’.» Fixemo-nos em Antero e Oliveira Martins, os mais despudoradamente falsificados pela «Nova Geração» de «intelectuais», «intelectuais orgânicos» e «funcionários culturais», apostada em servir e (ou) servir-se do Estado Novo. Com efeito, se é certo que muitos reaccionários tentaram «reabilitar» o liberalismo de um Almeida Garrett e de um Alexandre Herculano, «assimilando-os» às suas piruetas ideológicas, a apropriação de Antero de Quental e de Oliveira Martins terá sido, porventura, ainda mais vil e escandalosa.

As ideologias integralista e católica, tal como, depois, a salazarista, ousaram classificar Antero, partidário da extinção das classes sociais, companheiro do socialista José Fontana, «cérebro» das Conferências Democráticas do Casino e autor das «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», como um contra-revolucionário. Queriam «branquear» a biografia política do pensador anti-individualista e antiparlamentarista, que fora um seguidor de Proudhon. António Sardinha teve, mesmo, o desplante de dar à luz este pomposo naco de prosa envenenada: «Camões na Renascença, o Padre António Vieira em Seiscentos, José Agostinho de Macedo na agonia da sociedade antiga, são a representação universal do nosso génio na Epopeia, na Política, e no Panfleto. Juntemos-lhe agora Antero na Filosofia.»

Quanto a Oliveira Martins, não foi menos descarado o trabalho dos tradicionalistas ao deformarem o seu perfil socialista e agnóstico: assim, o mesmo António Sardinha dizia a «História de Portugal», nada mais, nada menos, do que «um livro desgraçado», mas a «A Vida de Nun’Álvares» recebia o seu entusiástico e definitivo «agrément», porque a abordagem seria inspirada por um pretenso «misticismo filosófico». Perguntava: «O que é a ‘Vida de Nun’Álvares’ senão o seu [dele, Oliveira Martins] retrato psíquico, senão o espelho fiel do seu espírito, finalmente repousado num misticismo intelectual que lhe abriria as portas da conversão religiosa?» Só o eco lhe responderia...

Também muito «interessante» é a posição de Alfredo Pimenta, em 1941, embora adoptando a táctica inversa: «Os verdadeiros e enérgicos dissolventes da Sociedade portuguesa, no campo da inteligência, foram Eça de Queiroz e Ramalho, no panfleto das ‘Farpas’, secundados, dez anos depois, por Fialho nos ‘Gatos’; Guerra Junqueiro, na Poesia; Rafael Bordalo, na Caricatura; Oliveira Martins, na História; Eça de Queiroz, sozinho, no Romance. É uma equipa de autênticos malfeitores do Espírito – e tanto mais perigosos, quanto é certo que foram homens de real valor.» (…) «Antero, do alto da excelsitude da sua grandeza moral, esse que nos diziam ser Santo e modelo de homens, bradava-nos em termos inequívocos que o verdadeiro patriotismo nos impunha o dever de renegar a nacionalidade. Tal qual: ‘renegar a nacionalidade’.» Tratava-se, agora, de atacar de viés o iberismo: tarefa nada «heróica», pois tinha como pano de fundo o «antibolchevismo» triunfante na Guerra de Espanha.

Alguns insignes representantes do romano «catolicismo», como Gonçalves Cerejeira, Trindade Salgueiro ou Moreira das Neves, também se esforçaram por detectar em Antero e Oliveira Martins marcas de «arrependimento» e «conversão», nem que fosse no leito de morte. Antero seria mesmo apresentado por salazaristas como um precursor da «Revolução Nacional» – indo eles a reboque de António Sardinha, que o considerara como «precursor da Contra-Revolução».

Menção especial é devida, por outro lado, neste volume, aos textos dedicados ao modernismo, à literatura, ao cinema, à radiofonia ou à visão de Castela e Espanha durante o salazarismo. Releve-se, por fim, o excelente «levantamento historiográfico» com que Reis Torgal conclui a sua obra, complementando aquela que, juntamente com José Amado Mendes e Fernando Catroga, fez publicar com o título «História da História em Portugal – Séculos XIX e XX», sem dúvida insubstituível para todos os estudiosos das épocas ali em questão.

Luís Reis Torgal, «Estados Novos, Estado Novo» (Volume II), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, 422 páginas