Tony Judt/A amarga desonra da Europa

António Rego Chaves

Este será para muitos um livro perturbador: habituados ao eufórico e balofo discurso dos «eurocons» sobre as excelsas virtudes da UE, espera-os um autêntico «balde água fria», depois de lidas perto de novecentas páginas desta notável obra do historiador britânico Tony Judt. Referimo-nos ao «Epílogo», com o título: «Da Casa dos Mortos – Um Ensaio sobre a Memória Europeia Contemporânea». Porquê «balde de água fria»? A razão é simples: percorrido um longo trajecto económico, social, político e cultural que parte de 1945 e apenas finda em 2005, o leitor é confrontado com esta certeira profecia de Hannah Arendt: «O problema do mal será o problema central da vida intelectual do pós-guerra na Europa.» E Tony Judt garante, a seguir, que «o bilhete de acesso à Europa contemporânea é o reconhecimento do Holocausto». Considerando que «a recusa sistemática por parte da Turquia em reconhecer o ‘genocídio’ da sua população arménia será um impedimento da sua candidatura» à UE, «assim como a Sérvia continuará ignorada à porta da Europa enquanto a sua classe política não assumir a responsabilidade pelas chacinas e outros crimes nas guerras na Jugoslávia», o autor salienta que «o Holocausto dos judeus foi removido da memória» do Velho Continente durante decénios. Recorrendo a Hans Magnus Enzensberger: «Nos anos da abundância após a guerra os europeus refugiaram-se numa amnésia colectiva».

De facto, a «síndroma de Vichy», ou seja, a dificuldade em assumir o que de vergonhoso se passou durante a Segunda Guerra Mundial, não afectou apenas a França. Todos os países europeus subjugados pelos nazis alimentaram a sua própria «síndroma de Vichy» – com a única e honrosa excepção da Dinamarca, onde o colaboracionismo foi repudiado e, em consequência, os judeus sobreviveram. Austríacos, italianos, polacos, holandeses, belgas, noruegueses, húngaros, romenos, eslovacos ou croatas manifestarem-se sempre avessos a julgar colaboracionistas e recusaram até ao limite do racionalmente admissível reconhecer culpas no genocídio dos judeus. Em finais do século XX, o Holocausto era já, porém, uma questão central na identidade europeia. A última conclusão do «Epílogo» da obra será, no mínimo, inquietante: «Se no futuro tivermos de recordar por que pareceu tão importante construir um determinado tipo de Europa a partir do crematório de Auschwitz, só a História nos poderá ajudar. A nova Europa, unida pelos sinais e símbolos do seu terrível passado, é uma vitória notável; mas permanece hipotecada a esse passado. Se os europeus estão determinados a manter este vínculo fundamental – se o passado da Europa continuar a projectar no futuro um significado admonitório e um propósito moral –, então terá de ser ensinado desde o princípio a cada nova geração. A ‘União Europeia’ será, talvez, uma resposta à História, mas nunca poderá substitui-la.»

A amarga desonra da Europa (onde muitos governantes se recusam, hoje, a conceder aos direitos económicos, sociais e culturais dos seus cidadãos a mesma dignidade que atribuem ao que chamam «liberdade», para eles, preto no branco, liberdade de desemprego, de sobreviver sem abrigo e de morrer de fome, ou de não ter acesso à saúde ou ao ensino gratuitos), tem, aliás, outros infames precedentes. Bastam o capitalismo «selvagem» dos últimos decénios e o não menos selvagem colonialismo que praticámos durante séculos para se entender como traímos apregoados valores nucleares da «civilização ocidental», por alguns teimosamente apelidada de «cristã».

Este livro deve ser lido sobretudo pelo que nos recorda e pelo que nos obriga a fixar. Vale a pena recordar o apogeu do Estado-Providência e da abundância de empregos. Vale a pena recordar o surgimento dos subsídios de desemprego, das pensões de reforma e dos abonos de família pagos pelo Estado. Vale a pena recordar que, no pós-guerra, por exemplo na Grã-Bretanha, e em grande parte devido a um relatório de Sir William Beveridge, se «inventou» o Serviço Nacional de Saúde e que governantes europeus ocidentais assumiram então, pela primeira vez, a plena responsabilidade pelo bem-estar de todos os cidadãos. Esse não foi um passo insignificante na boa direcção.

Que vale a pena fixar? Vale a pena fixar que a Irlanda, a Espanha, Portugal, a Suiça e a Suécia – os chamados «países europeus neutrais» – estiveram profundamente empenhados no esforço de guerra nazi (só para lembrar um caso muito «esquecido», o tungsténio chegava à Alemanha, via Lisboa, proveniente das colónias portuguesas). Vale a pena fixar que a auto-imagem preferida da imperfeitamente desnazificada RFA de Adenauer era a de tripla vítima: vítima de Hitler, vítima dos seus inimigos, vítima da propaganda do pós-guerra. Vale a pena fixar que «a CEE era [um pouco como ainda hoje a UE?] um condomínio franco-germânico onde Bona pagava as finanças da comunidade e Paris ditava as suas políticas». Vale a pena fixar que, entre 1961 e 1974, milhão e meio de portugueses procurou trabalho no estrangeiro – «o maior movimento populacional da História de Portugal». Vale a pena fixar que, nos anos 60, a «Nova Esquerda» encontrou nos «Manuscritos Económico-Filosóficos» e noutros textos do jovem Marx com que alimentar a esperança de transformar o mundo, conquistando a igualdade sem abdicar da liberdade. Vale a pena fixar que «Salazar era, à sua maneira, um genuíno entusiasta dos objectivos ecológicos – atingidos neste caso por meio do simples expediente de manter os seus compatriotas numa situação de torpor económico sem paralelo». Vale a pena fixar quem são os incontestados mentores de muitos líderes europeus orientais depois da queda do Muro de Berlim: Friedrich Hayek e Milton Friedman – os «inimigos» do Estado-Providência. E milhares de outros factos. Ainda que o autor conceda um relevo excessivo à Grã-Bretanha, à Alemanha e à França, peque por falta de poder de síntese e nos possa entediar o seu verrinoso anticomunismo, um tanto à maneira de François Furet, julgamos que o conteúdo deste livro deve ser meditado de uma ponta à outra. Em nome do futuro.

Tony Judt, «Pós-Guerra», Edições 70, 2007, 963 páginas