Portugal e a Grande Guerra (João Chagas)

António Rego Chaves

Afirma Amadeu Carvalho Homem, no Prefácio, que esta obra de Noémia Malva Novais, produto de «um labor de inatacável seriedade, colmata lacunas apreciáveis na bibliografia geral do republicanismo». E explicita que «está praticamente por fazer o levantamento e a interpretação do trabalho dos embaixadores republicanos, no período crucial que se estende entre 1910 e 1926». Nada capaz de surpreender quem recordar que os sectários do Estado Novo só referiam a República no intuito de a denegrir: não há, pois, que estranhar o silêncio ainda hoje «ensurdecedor» acerca do que de facto se passou com Portugal entre o fim da Monarquia e o início do consulado de Salazar.

João Chagas (1863-1925) não foi apenas conspirador contra a ditadura de João Franco e destacado militante republicano, notável escritor e jornalista político, revoltoso do 31 de Janeiro de 1891 e degredado em África. Chefiou, em 1911, o primeiro governo constitucional e desempenhou as funções de ministro plenipotenciário em França, tendo-se honradamente demitido durante as ditaduras de Pimenta de Castro e Sidónio Pais, proclamando que, sendo ele representante de um regime de liberdade, não servia ditaduras nem ditadores. Além disso, depois de ser alvo de um atentado que o deixou cego de um olho, quando se preparava para presidir ao executivo saído da revolução de 14 de Maio de 1915, revelou-se tenaz defensor da participação de Portugal na Grande Guerra e representou-nos na Conferência da Paz e na Sociedade das Nações.

Em Abril de 1911 parte para Paris, a fim de chefiar a Legação de Portugal. Arguto analista da política internacional, não cessará de se inquietar: com efeito, não lhe passou despercebido o perigo das manobras diplomáticas levadas a cabo em 1898 e reatadas de 1912 a 1914 entre a nossa velha e nem sempre leal aliada Inglaterra e a Alemanha, cuja finalidade era a partilha entre ambas das colónias portuguesas. Ciente de que Londres pretendia apaziguar à custa de Portugal as ambições coloniais de Berlim, moderando assim por algum tempo a obsessão expansionista dos alemães, decerto foi dos primeiros a entender que só a Grande Guerra poderia impedir que se consumasse a vultosa «negociata» em curso entre as duas poderosas potências rivais.

Homens como Afonso Costa, Alexandre Braga, Álvaro de Castro, Bernardino Machado, João Chagas e Norton de Matos foram dos que mais se bateram pela nossa intervenção militar na Europa – aliás secundados pelo ex-rei D. Manuel II, mas não pela maioria (germanófila) dos monárquicos–, compreendendo que aquela presença seria decisiva para garantirmos, não apenas a posse dos territórios africanos e asiáticos sob a nossa tutela, como a própria independência nacional, ameaçada pela Espanha «neutral» e antiliberal da época. A História dar-lhes-ia razão. Como relevou David Ferreira: «Nos meios da Conferência de Paz falava-se das pretensões da Bélgica sobre o nosso Congo, das ambições da China a respeito de Macau e das da União Sul-Africana em relação a Moçambique, assim como se murmurava que a França queria a Índia, a Holanda pretendia comprar Timor, a Itália desejava instalar-se no planalto de Benguela e no Sul de Angola, e que os desejos da Bélgica se estendiam também a Cabinda e aos territórios do nosso Baixo Congo até o Ambriz, além de pretender uma compensação a fim de alargar a sua saída, no Congo Belga, para o mar.» Caso Portugal se tivesse mantido neutral – como advogaram os monárquicos, os unionistas republicanos de Brito Camacho e alguns sectores do exército – não é difícil adivinhar qual teria sido o destino do nosso tão cobiçado império colonial e, até, da República...

«A estratégia intervencionista – escreve a autora, citando Nuno Severiano Teixeira – ‘assumia a defesa de interesses nacionais e objectivos de ordem externa […] como a garantia de integridade colonial em África, da soberania nacional face à Espanha e a conquista do prestígio internacional do regime’.» João Chagas – garante Noémia Malva Novais – «foi seguramente o primeiro diplomata a defender intransigentemente a intervenção de Portugal no conflito.» (…) «Conhecia (e abominava) a histórica dependência portuguesa da aliança luso-britânica e as predisposições britânicas face às colónias portuguesas, manifestadas, mais uma e outra vez, em 1912 e 1913». Por isso defendia «uma diversificação das relações internacionais que permitisse a Portugal libertar-se da situação de protectorado britânico», recorrendo à França. Interrogaria o político: «Portugal não compreende que é este o momento, ou nunca, de resgatar o seu passado de tutelado da Inglaterra e ser enfim o seu aliado, de ser alguém?»

Conclui a autora: «Feita a Guerra, havia que fazer o rescaldo. Para Portugal, este rescaldo foi dramático, deixando registadas nos anais perdas humanas, materiais e morais. Só a Conferência da Paz nos podia salvar da tempestade trazida pela Guerra. Assim, em Janeiro de 1919, Portugal entrou na Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes como um dos 70 delegados das 32 nações vencedoras que, durante os meses seguintes, iriam redigir o Tratado de Paz. Cheio de sonhos e ilusões, Portugal entrou com um punhado de exigências e saiu quase de mãos a abanar. Salvámos a nossa integridade colonial. E foi tudo.» (…) «João Chagas, que integrara a Delegação Portuguesa à Conferência da Paz, presidida por Afonso Costa, acabou por alinhar com este na Sociedade das Nações. Derrotados na Guerra, esquecidos na Paz, fomos à procura do prestígio entre as nações. Mas também aí nos escapou. Para a história fica a memória de um Portugal injustiçado (no momento da partilha dos benefícios da guerra) mas, em certa medida, co-responsável por essa medida. Não apenas […] por ter avaliado incorrectamente a ‘correlação entre os objectivos e os meios’ mas também porque ‘à ambição e largueza de vistas’ do projecto intervencionista de João Chagas (e outros) não correspondeu o sentimento de unidade nacional que Portugal deveria ter conquistado em face do perigo comum que se avizinhava com a Guerra.»

Noémia Malva Novais, «João Chagas – A Diplomacia e a Guerra (1914-1918)», Minerva, 2006, 212 páginas