Saraiva contra Saraiva

António Rego Chaves

Conservo há quase meio século em meu poder a primeira edição da «História da Literatura Portuguesa» de António José Saraiva (AJS) e Óscar Lopes (OL). Foi e continua a ser um utilíssimo livro e julgo que, tal como eu, milhares e milhares de pessoas de todas as idades recorrem ainda hoje a uma das 17 edições revistas desta obra notabilíssima para estudar, esclarecer dúvidas ou seleccionar bibliografias.

Há uma nítida orientação ideológica na primeira edição? Penso que sim – e que ela se deve ao marxismo que os dois autores perfilhavam nos anos cinquenta. Que um deles o tenha abandonado em 1962/63 (AJS) e o outro nunca (OL), nada poderá significar em termos de honestidade intelectual, tanto mais que ambos pagaram um elevadíssimo preço (prisão pela PIDE, silenciamento, expulsão do ensino) pelo seu antifascismo.

A correspondência entre AJS e OL, agora em 2.ª edição, parece-me um documento muito importante – aliás tal como a Pacheco Pereira, José Carlos Vasconcelos, José Manuel Fernandes, António Guerreiro, Francisco Bélard ou Baptista-Bastos. Mas não sei se pelos mesmos motivos. Na verdade, apostaria que nenhum dos cinco primeiros é íntimo apreciador da coerência de Óscar Lopes, embora muito os satisfaça a fase não-marxista de António José Saraiva. Aliás, a editora do livro, Leonor Curado Neves (LCN), não se cansa de acentuar, em dezenas de militantes e repetitivas notas de rodapé, que AJS morreu a léguas do «materialismo dialéctico» – o que, queiram ou não queiram estalinistas e LCN, não é o mesmo que morrer a léguas do materialismo histórico. Mais: segundo LCN, o autor da monumental, única e nunca reeditada «História da Cultura em Portugal» teria incorrido num «intervalo» marxista de 15 anos, após o qual as suas ideias rumaram de vez para longe do PCP de Álvaro Cunhal. Só lhe falta exclamar: «Graças a Deus, desviou-se a tempo do mau caminho!»

O facto é que, já em 1963, em pleno exílio, AJS esclarecia a sua atitude perante qualquer «catecismo» ideológico: «O problema para mim é que sou anti-católico em qualquer sentido, porque anti-ortodoxo. Sou herege de qualquer religião. Situação muito incómoda de que já estou sentindo os efeitos. Os meus antigos amigos e admiradores que não me regateavam as palmas estão tentando excomungar-me. Fazem uma campanha de desprestígio e de maledicência à minha volta. Este mundo é duro: haverá sempre inquisidores e fogueiras. E os homens como Giordano Bruno, que lutaram pela liberdade de pensar contra as maiorias, acabaram por ser postos nos altares das novas maiorias, contra as quais eles de novo lutariam se ressuscitassem. Pobre Marx, se visse o marxismo transformado noutra igreja!» Em suma, «não» à Companhia de Jesus, «não» ao Partido Comunista – e, nos últimos anos, um aceno de simpatia a Francisco de Assis, aos socialistas utópicos, ao Mahatma Gandhi.

Óscar Lopes, «interlocutor privilegiado de AJS, está, porém, longe de ser um cavernícola encerrado nas suas inabaláveis certezas, estático na cegueira da sua «fé»: é um racionalista que, como Marx, não se limita a pensar o mundo – anseia por transformá-lo. Como salienta Isabel Pires de Lima, «sente absolutamente que o destino de qualquer ser social é também o seu destino.» Isto é, longe de se trancar a sete chaves com as suas dúvidas, procura companheiros de jornada, escolhe juntamente com eles o caminho a seguir, luta pela igualdade, aqui e agora. Em suma, é comunista. O que não significa – ao contrário do que a editora das cartas pretende que AJS sustentou –, que um comunista tenha de renunciar a pensar pela sua própria cabeça, a questionar-se enquanto indivíduo e a erigir o marxismo em tema de meditação filosófica, proibindo-se de reflectir e papagueando uma cartilha ditada pelo Comité Central do PCP, do qual, aliás, OL já foi membro. Se no século XX o cristianismo conheceu um Teilhard de Chardin, um Leonardo Boff, um Hans Küng, o marxismo foi fértil em «heterodoxias» como as de Gramsci, Georg Lukács ou Jean-Paul Sartre…

Curioso é verificar – pela pena de AJS –, que o seu trânsito da Igreja Católica para o Partido Comunista nada teve de «libertário»: «Sobre a nossa má consciência em 1945, devo dizer-te que eu a não tinha, acreditava no centralismo democrático, etc., como pouco antes tinha acreditado em Deus nosso Senhor. Na minha atitude actual não renego o que anteriormente pensei, porque aquilo por que eu lutava era, antes de mais, a autenticidade, a negação da mentira, do convencionalismo, da resignação, etc. Ora é por isso que eu luto hoje; era por isso que eu lutava quando era muito convictamente cristão.» (…) «Comparando-me contigo descubro que eu vejo as coisas uma de cada vez sem poder fazer a síntese; daí resulta que sou capaz de defender polemicamente coisas que parecem opostas, mas que afinal se resolvem numa síntese.» (…) «Estou cansado deste esforço de explicar o que em mim é nebulosa.»

Acompanhemos até ao fim estes dois vivos monólogos – que se transformam por vezes em brilhantes diálogos de surdos – sobre os EUA, a URSS, o estalinismo, o centralismo democrático, o conflito sino-soviético, as invasões da Hungria e da Checoslováquia, o Muro de Berlim, o Maio de 68 e Marcuse, Israel, o Brasil, Kant, Hegel e Husserl, o marxismo e a luta de classes, a política portuguesa, o PC e o PS, o colonialismo e a luta dos povos colonizados, a UE, António Sérgio, Leonardo Coimbra, Agostinho da Silva, os neo-realistas, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Agustina Bessa Luís. «Não sei se guardas cartas. Da nossa correspondência de cerca de 40 anos fazia-se um bom documentário das preocupações da nossa geração» – escreve OL a AJS em finais de 1987. Pena que AJS não tenha conservado tudo, para que as argumentações se tornassem acessíveis na íntegra a todos nós. Assim, estas transformam-se muitas vezes, mesmo demasiadas vezes, num intenso e quase obsessivo confronto verbal entre António José Saraiva e… António José Saraiva.

António José Saraiva e Óscar Lopes, «Correspondência», 2.ª edição revista e com índice onomástico, Gradiva, Março de 2005, 501 páginas