A porta do mistério (Stefan Zweig)

António Rego Chaves

No prefácio que escreveu para esta obra de Jean-Jacques Lafaye, afirma Mário Soares que, para muitos dos intelectuais com quem conviveu na juventude – António Sérgio, Câmara Reys, Rodrigues Lapa, Bento de Jesus Caraça, Mário de Azevedo Gomes, Casaes Monteiro, Aquilino Ribeiro – Stefan Zweig «era um divulgador de talento, mas um escritor menor». Sempre nos repugnou esta expressão, quando utilizada em relação a este e a outros autores que, talvez por terem escrito de mais, raramente foram conhecidos na íntegra. Aliás, não nos parece que aos leitores da autobiografia de Stefan Zweig («O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu»), dos «Diários» (1912-1940) e das «Cartas» possa passar despercebido que, por detrás do escritor, se encontra um notabilíssimo homem de cultura que, como poucos, soube apreciar com sagacidade a evolução do Velho Continente nos primeiros decénios do século XX.

O autor adverte-nos, logo de início, de que apenas pretende «esboçar o retrato de uma vida, livremente». E acrescenta: «Nem biografia nem romance, tentei a experiência de um ensaio à maneira de Zweig, insinuando-me na sua personagem até à identificação.» Não somos, pois, convidados a visitar um «distanciado» relatório «à inglesa», mas uma interpretação pessoal da vida e obra do homem que, nascido em 1881 na capital austríaca, se suicidaria em Petrópolis, no Brasil do ditador Getúlio Vargas, em 1942.

Stefan Zweig seria sempre um privilegiado – «mas também um daqueles que sofrerão mais duramente quando os sangrentos sobressaltos da história vierem destruir tudo: o sentido da ordem na diversidade, o santo respeito pela liberdade, a insubstituível exigência interior que é a marca de todos os que possuem o verdadeiro espírito europeu». Nascido em abastada família de Viena, durante o Império Austro-Húngaro, mergulha num meio «onde todas as escolas de pensamento e todas as capelas artísticas se encontram». Depressa assimilará os clássicos gregos, latinos e alemães, bem como os austríacos Hugo von Hofmannsthal, Mozart e Mahler. Ibsen, Keats, Rimbaud, Strindberg, Verlaine ou Baudelaire também marcarão o adolescente, que quase não tem consciência do anti-semitismo vigente na sociedade em que se julga plenamente integrado e de nela ser considerado um judeu. Não conhece ainda «nem a vida nem o mundo, escapa-lhe grande parte dos acontecimentos austríacos e mundiais».

Desde muito jovem que se pode dar ao luxo de viajar. Irá ao Extremo Oriente, conviverá em Berlim com a fauna literária e artística nos seus locais de eleição, flanará pelas ruas de Paris e descobrirá a obra de Marceline Desbordes-Valmore, encontrará em Bruxelas Émile Verhaeren, cujos poemas traduzira para alemão, e tornar-se-á seu discípulo. Afirma Jean-Jacques Lafaye: «Está convencido de que Verhaeren está para a Europa como Walt Whitman está para a América, propagador de um optimismo inatacável na capacidade de progresso e de renovo que o século XX traz consigo.»

A capacidade de admiração de Stefan Zweig é inesgotável. Ao contrário de muitos dos seus pares, não venerará, apenas, os mortos sobre os quais escreverá, como Kleist, Hölderlin ou Nietzsche. Elegerá como «mestres» Verhaeren, Romain Rolland, Freud. E até procurará, nos dias conturbados da «Grande Guerra», conciliar nacionalismo e internacionalismo, belicismo e pacifismo. Vãos esforços, à partida condenados ao malogro. Mas ultrapassará, um a um, todos os obstáculos à sua carreira literária: talvez porque aquilo que mais o obcecasse, no dia a dia, na sua ânsia de existir, tenha sido só um homem, apenas um homem, nada mais do que um homem – Stefan Zweig. Narcisista, embora nem sempre assumido? É possível, mas quem se encontrará hoje em posição de subscrever tal afirmação com pleno conhecimento de causa?

Apanhado de chofre, em 1914, pelo início do conflito mundial, perde-se na confusão: parece esquecer os seus valores universais, torna-se «patriota». Destacado para os «Arquivos de Guerra», obriga-se a redigir burocráticas lições de encorajamento aos combatentes da frente austro-húngara. Desta provação intelectual irá «salvá-lo» Romain Rolland, «consciência inteira, sólida como um diamante». Até que, em 1916, dará à estampa «Jeremias», um genuíno grito de horror e de revolta perante a guerra.

No momento em que termina a carnificina, o habitat que tanto amara está morto. Pouco importa que passe a ser, então, o autor de língua alemã mais lido do mundo. O único mundo de que terá para sempre a nostalgia foi pulverizado. Chegam o fascismo, o nazismo, o estalinismo; o aristocrata do espírito esconde-se atrás de Kleist, o suicida, de Hölderlin, o louco, de Nietzsche, o «cego» pela luz da Verdade. Enfim, foge da realidade…ou talvez não. Talvez pressinta o negro futuro que espera a sua geração, mas também se vai ocupando de Stendhal, Casanova e Tolstoi. Até ver, até se deixar morrer. Pese a quem pesar, foi um homem flébil: e fugiu de si mesmo, por vezes para a frente, como com Richard Strauss, as juventudes hitlerianas, o próprio «Führer».

Queimam-lhe os livros em «autos-de-fé», o seu nome é infamado, mas «não escreve uma só linha contra Hitler e a Alemanha». Porquê? Porque é um «humanista» como Erasmo – e não um «fanático», como Lutero? Ora adeus, fanático, fanático mesmo, era Hitler. Lutero foi «só» o coerente homem de coragem que Erasmo não conseguiu ser.

«Arrastado na lama pelos nazis e acusado de complacência por todos os outros», Stefan Zweig sente-se abandonado. Rejeitado pelo seu país, nem a neblina de Londres, nem a agitação de Nova Iorque, nem o Carnaval do Rio o seduzem. Sabe-se irremediavelmente vienense – e, a sua Viena, essa mataram-na. Escreve sobre o que viu, não ousa falar do presente. O seu sonho desfez-se, está convencido de que Hitler vai ganhar a Guerra. Acaba o livro de Memórias e a biografia de Balzac, disserta sobre Montaigne, seu íntimo companheiro do fim da vida. Deixa de hesitar, escolhe o veneno. Os dados estão lançados, não mais lhe será dado optar. «O porvir da nostalgia é a morte escolhida, a morte consentida – e a porta do mistério.»

Jean-Jacques Lafaye, «O Porvir da Nostalgia – Uma Vida de Stefan Zweig», Campo das Letras, 2007, 229 páginas