As inconsolações de Freud

António Rego Chaves

Escreveu Ludwig Marcuse que Freud e Marx foram as celebridades menos bem aceitas no século XX. Tivesse ou não razão, a verdade é que a relação entre Freud e Marx é tanto mais curiosa quanto é certo que, ainda hoje, são inúmeros os freudianos que se assumem como antimarxistas, ao passo que, entre os marxistas, são também legião os que repudiam o freudismo. Claro que o freudomarxismo à maneira de um Wilhelm Reich em nada contradiz tais tendências, que admitem múltiplas excepções.

Continuemos com Ludwig Marcuse: «Freud encarava o futuro numa posição (…) igualmente alheia ao entusiasmo utópico e ao gritante desespero. Não rejubilava com o porvir; não se consolava com as vindouras bem-aventuranças, quer divinas quer bolchevistas. Como poucos no temeroso século XX, teve a coragem de dizer: ‘Curvo-me perante a acusação de que não sei oferecer consolações.’» (…) «O comunismo e a psicanálise não se dão bem», martelava. Reconhecia, porém, que «uma alteração real nas relações entre o homem e a propriedade» seria «incontestavelmente» mais vantajosa do que qualquer mandamento ético. O problema é que considerava uma ilusão que a agressão fosse originada pelo capitalismo. Segundo cria, a agressão não fora causada pela existência da propriedade privada – e, por isso, não se poderia esperar que aquela desaparecesse logo que esta se extinguisse de uma vez para sempre.

Sintetiza Ludwig Marcuse: «[Freud] escrevia contra Marx porque via nele um grande causador de calamidades. Reconhecia que, no marxismo, a ilusão filosófica ou idealista acerca da natureza do homem se conjuga com a liberalidade de sacrificar a esta fantasia hecatombes humanas. Quem se insurgia não era o obstinado psicólogo nem um ‘reaccionário’. Considerava essa ilusão tão perigosa para a comunidade como as mais sangrentas cruzadas do passado.» Mas jamais esboçou loas ao capitalismo.

«O Mal-Estar na Civilização» (1930) foi considerado por Jacques Lacan «obra essencial» sobre a tragédia da condição humana. Freud adopta aqui a ideia de Hobbes segundo a qual «o homem é um lobo para o homem», mas, ao mesmo tempo, repudia, por as considerar irrealistas, as duas grandes utopias do mundo ocidental: a cristã («amarás o teu próximo como a ti mesmo», «ama o teu inimigo») e a comunista, assente na bondade inata do homem e na esperança de edificar uma sociedade sem classes. Subjacente encontra-se o problema da violência, que o vinha preocupando há longos anos, como se verifica na sua obra de 1915 «Reflexões em Tempo de Guerra e de Morte», também incluída nesta edição, bem como num ensaio de 1919 sobre as nevroses de guerra e no estudo «Para Além do Princípio do Prazer» (1920), passando por «O Futuro de uma Ilusão (1927) e culminando com «Porquê a Guerra?» (1933), troca de correspondência com Einstein cujo conteúdo já analisámos nestas páginas.

Sigmund Freud faz notar que «a grande maioria dos homens trabalha apenas por obrigação, e que a aversão natural ao trabalho está na raiz de grandes problemas sociais (aqui não anda muito longe do caminho percorrido por Marx nos seus «Manuscritos de 1844»); denuncia a desvalorização da vida terrena e a «ilusão colectiva» impostas pela religião (o célebre «ópio do povo» de Marx) que conduziria muitos àquilo a que chama «infantilismo psíquico»; apresenta a civilização como «todo o conjunto de feitos e instituições que assinalam a distância entre a nossa vida e a vida dos animais nossos antepassados, e que estão ao serviço de dois fins: a protecção do homem contra a natureza e a regulação das relações dos homens entre si». Este modo como estão reguladas as relações sociais que respeitam ao indivíduo enquanto vizinho, força de trabalho ou objecto sexual de um outro, membro de uma família e de um Estado, não seria, decerto, a característica menos importante da civilização. O poder da comunidade reprime a liberdade individual, torna inevitável o conflito entre ambas, gera frustração, hostilidade, agressão. Heine «dixit»: «temos de perdoar aos nossos inimigos, é bem verdade, mas não antes de eles serem enforcados».

O comunismo proclamava ter descoberto a panaceia para «curar» a agressão: o fim da propriedade privada dos meios de produção. Freud respondia: mas que ilusão! «As diferenças de poder e influência, de que a agressão abusa para servir as suas intenções, manter-se-iam intactas, a sua natureza em nada mudaria. A agressividade não foi criada pela propriedade privada, reinava já quase soberana em tempos primitivos.» Exemplo: o extermínio da burguesia não pôs termo à agressividade dentro da URSS.

A civilização impõe enormes sacrifícios à sexualidade e à tendência para a agressão. Já na família primitiva só o pai era sexualmente livre, sendo os filhos subjugados, ao passo que, hoje, só as minorias usufruem de todas as vantagens da civilização, sendo as maiorias delas privadas. «A tendência para a agressão é uma disposição instintiva do homem, primitiva e autónoma, sendo também o maior obstáculo à civilização.» Ao procurar unir indivíduos isolados, famílias, tribos, povos e nações, a civilização choca com o instinto do homem para a agressão, «a hostilidade de um contra todos e de todos contra um». Óbvio que nada aprendemos com os mosqueteiros de Alexandre Dumas.

Conclui Freud: «Falta-me a coragem para me anunciar como profeta diante dos meus contemporâneos, e submeto-me assim à sua censura por não ter conseguido trazer-lhes algum consolo, que é no fundo aquilo que todos ardentemente desejam, do mais frenético revolucionário ao crente mais devoto. A questão do destino da espécie humana parece-me ser a de saber se e em que medida a evolução da civilização conseguirá controlar os distúrbios que os instintos humanos para a agressão e para a autodestruição causam na vida em comunidade.» (…) «Os homens levaram agora o domínio sobre as forças da natureza a um extremo tal que com a sua ajuda lhes será fácil exterminarem-se mutuamente até à última vida». (…) «Quem poderá prever o desfecho e as consequências deste combate?» Certamente que ninguém, Dr. Freud…

Freud, «O Mal-Estar na Civilização», Relógio D’Água, 2008, 167 páginas