Do sublime ao grotesco (Heidegger)

António Rego Chaves

A obra e a vida, ou seja, o sublime e o grotesco em Martin Heidegger: eis como, terminada a leitura desta antologia de perto de um sétimo das cerca de mil cartas que o filósofo escreveu, entre 1915 e 1970, a sua mulher, Elfride, podemos sintetizar o conteúdo mais relevante dos textos que nos são dados a conhecer, ainda que muito pouco eles digam de novo acerca das convicções nazis e «anti-semitas» do casal. É que, curiosamente, «desapareceram» quase todas as cartas redigidas por Heidegger no período crucial que decorreu entre 1933 e 1938, precisamente aquelas que melhor nos poderiam informar acerca da «autenticidade» com que Martin e Elfride viveram esses inolvidáveis «anos de ouro» do hitlerismo. Mas não faltam referências odiosas aos judeus, a par de ridículas evocações das virtudes da «raça alemã». O «judeu» Husserl e o «ariano» Jaspers (casado com um judia) não escapam aos preconceitos de ambos os cônjuges, que parecem ignorar o que se passava na «sua» querida Alemanha em matéria de perseguições, atrocidades e extermínio de milhões de seres humanos.

Asseveram Barbara Cassin e Alain Badiou, que assinam a introdução do livro: «No fundo não há mais nada de interessante a dizer sobre o anti-semitismo e o nazismo de Heidegger, se nos cingirmos às duas posições hoje dominantes. A saber, do lado dos censores democratas, a convicção de que, porque foi nazi, Heidegger se encontra desqualificado como filósofo e deve ser retirado das bibliotecas, onde poderia corromper a juventude. E, do lado dos piedosos heideggerianos, a convicção de que, uma vez que ele é um grande filósofo, é impossível que Heidegger tivesse sido verdadeiramente nazi.» Digamos, sem medo das palavras: grande filósofo, desprezível cidadão. E um provinciano, mulherengo e oportunista capaz de cobrir a nudez destas realidades com uma linguagem que, não poucas vezes, pela sua beleza, obriga os seus leitores, fascinados, a curvar-se perante um talento muito próximo da genialidade.

A personagem transforma-se, por vezes, num descarado farsante. É a própria mulher com quem foi casado que denuncia as suas «habilidades»: Elfride faz notar que as belíssimas cartas que lhe foram dirigidas por Martin durante a Primeira Guerra Mundial constituíram o modelo de todas aquelas, inumeráveis, que em seguida enviará às suas sucessivas «bem-amadas». E o pensador chegará a declarar que, sem estas musas que seduzia com impressionante rapidez, na sua quase totalidade suas alunas ou ex-alunas, não poderia ter criado as importantes obras filosóficas que fez publicar. Eis as suas palavras: «O bater das asas desse deus [Eros] aflora-me cada vez que dou no meu pensamento um passo essencial e me arrisco por caminhos não frequentados.»

Indiscutível é que a «chapa um» da epístola amorosa heideggeriana foi enviada vezes sem conta a uma multidão de destinatárias, que decerto nunca suspeitaram estar a receber senão uma cópia a papel químico de um original centenas de vezes utilizado.

No entanto, não pode oferecer dúvidas, se nos ativermos ao conteúdo das missivas, que uma intensa espiritualidade percorre a relação entre Martin e Elfride que, não obstante todas as infidelidades de que é vítima, parece ser «a única» que conta, a única verdadeiramente «necessária» – e não «contingente» – na vida do filósofo. Depois de, aos 81 anos, ele ter cometido o derradeiro adultério e sofrido um ataque cardíaco em plena faina sexual, Elfride, que cuidará dele até à morte, comenta, enfim tranquila, e já superada a grave depressão de que havia sido vítima: «Nunca mais fomos separados».

Mas há o reverso da medalha, revelado por Hermann Heidegger, o mais novo filho legítimo – mas não biológico – de Martin Heidegger: «Soube por minha mãe, no dia em que fiz catorze anos, que o meu pai biológico era um dos seus amigos de infância, meu padrinho, o médico Friedel Caeser, falecido em 1946.» Martin e Elfride casaram-se em 1917, o filho mais velho, Jörg, nasceu em Janeiro de 1919, Hermann em Agosto de 1920. Tanto quanto se apurou, o filósofo reagiu aparentemente sem pestanejar ao adultério de Elfride – mas porventura só aparentemente. E talvez não se possa declarar sem hesitação que os cinco decénios de infidelidades de Martin posteriores ao nascimento de Hermann nada tiveram a ver com este episódio, mantido secreto, da vida do casal. Embora a amplitude das «represálias» fosse desproporcionada, decerto ninguém sustentará com absoluta segurança que o comportamento libertino do filósofo não pode ter sido provocado pelo «caso» do nascimento do segundo filho de Elfride…

Barbara Cassin e Alain Badiou, como franceses que são, não resistem a comparar o casal Heidegger com o casal Sartre-Beauvoir. Para além de todas as públicas e notórias diferenças, salientam: «Heidegger/Elfride, um casal da época existencialista? Sim, num certo sentido. Ficamos impressionados com a elegância com a qual, pelo menos tanto quanto podemos saber ou ler, Heidegger aceita o filho adulterino de Hermann, de nenhuma forma o distingue do outro e se mantém nesta circunstância, apesar de tudo escabrosa, muito próximo, amorosamente, de sua mulher. A diferença essencial entre Heidegger e Sartre, que muitos traços da época aproximam, é, no fundo, que um é um professor de província alemã e o outro um intelectual parisiense. (…) «Falemos, no que a estes assuntos se refere, de um existencialismo provinciano, hipócrita e religiosamente dirigido, e de um existencialismo de uma grande capital, mais aberto (mais cínico?) e politicamente dirigido.»

Acrescentemos algo que não nos parece menos relevante: Sartre, tanto quanto os seus biógrafos nos dizem, era um homem que falava verdade a Simone de Beauvoir e não escondia as suas relações «contingentes» de ninguém – muito menos daquela que considerava ser a protagonista da sua única relação «necessária». Isto não dirá quase tudo acerca do carácter do autor de «O Ser e o Nada» – mas as omissões e mentirolas de Heidegger dizem mesmo quase tudo acerca do carácter do autor de «Ser e Tempo».

Heidegger, «Ma chère petit âme – Lettres à sa femme Elfride», Seuil, 2007, 527 páginas