Os torcionários e a sua lei (Henri Alleg)

António Rego Chaves

Quarenta e seis anos após a sua publicação, eis finalmente traduzido no nosso país o famoso «La Question», de Henri Alleg. Caberia perguntar por que motivo tanto tardou que ao leitor português sem acesso a línguas estrangeiras fosse facultado – e, sublinhe-se, por uma pequena editora –, este exemplar depoimento sobre a tortura praticada em nome da pátria, que tão grande mal-estar provocou em França. Sabendo-se como se sabe quão difícil é a qualquer nação enfrentar as suas debilidades morais, a explicação não parece ser muito complexa: também nós, portugueses de «brandos costumes», sempre evidenciámos uma inegável relutância em nos concebermos como torcionários durante a Guerra Colonial – e isso apesar de todas as evidências de sinal contrário. Daí uma previsível incomodidade se também nos víssemos retratados por este relato dilacerante, tão eloquente em sua crueza que o autor nem precisa de usar adjectivos para nos fazer sentir degradados. Talvez por isso, mesmo após a extinção da censura salazarista, nenhuma grande editora se arriscou a abrir a caixa de Pandora que nos poria em causa a todos nós. Digo «nós» e não apenas «eles», o ditador, a polícia política, os generais e, até, os «capitães de Abril»: porque todos fomos culpados de actividade ou passividade, excluindo os que se arriscaram a juntar-se ao «inimigo».

No posfácio que escreveu para «A Questão», infelizmente não inserido na edição portuguesa, Sartre pôs o dedo na ferida então em carne viva: «Felizes os que morreram sem nunca terem de se perguntar: “Se me arrancarem as unhas, falarei?” Mas mais felizes ainda os que não foram constrangidos, mal tinham deixado a infância, a colocar-se a outra questão: “Se os meus amigos, se os meus irmãos de armas, se os meus chefes arrancarem diante de mim as unhas de um inimigo, que farei eu?”» O espectador-cúmplice do torcionário coloca-o e coloca-se assim no banco dos réus, ao encará-lo e ao encarar-se como co-responsável por um crime contra a humanidade.

«A Questão» é, como diz o filósofo de «O Ser e o Nada», «um livro a desaconselhar às almas sensíveis». Henri Alleg, director do então banido jornal «Alger Républicain», francês torturado por franceses sob a acusação de «atentado contra a segurança do Estado e reconstituição de liga dissolvida», não nos poupa os pormenores das torturas a que o submeteram em 1957, com o rigor de quem se cinge à descrição factual da conduta dos seus algozes e das suas próprias reacções físicas e psíquicas perante as sevícias que lhe foram infligidas. Será, depois, condenado a dez anos de prisão, com o orgulho de não ter «falado» nem denunciado nenhum dos seus companheiros de luta, apesar dos choques eléctricos, dos espancamentos, das asfixias com água, das ameaças de ver os filhos e a mulher serem objecto de idêntico tratamento por parte dos militares. Ainda em 2001, durante o julgamento do general Paul Aussaresses, acusado de fazer a apologia de crimes de guerra num livro sobre a Argélia, Henri Alleg, já octogenário, declarava, em pleno tribunal, que o confronto bélico, apresentado em França «como um combate pela nossa civilização, era de facto uma guerra contra a independência de um povo, conduzida com os métodos dos ocupantes nazis». Mas a selecta sala de audiências não se deixou comover: afinal de contas, ironizou o jornalista Franck Johannes, o velho senhor tinha sido, em tempos, um…comunista.

E, no entanto… E, no entanto, já desde 1954 o insuspeito católico François Mauriac denunciara os «carrascos baptizados» que torturavam árabes na Argélia. Periódicos como «Témoignage Chrétien», «Esprit», «Le Monde», «France-Observateur» «L’Express», «Le Canard Enchaîné», «L’Humanité», «La Croix», recusavam silenciar o escândalo, apesar de apreendidos ou censurados. Cristãos como Pierre Henri-Simon, Hubert Beuve-Méry, Henri-Irénée Marrou, Jean-Marie Domenach, Paul Ricoeur, René Rémond e o Abade Pierre faziam ouvir as suas vozes contra os «métodos de pacificação» utilizados pelos militares, nomeadamente as execuções sumárias, os interrogatórios sob tortura, a brutalização de mulheres, o fogo posto em aldeias. Estas corajosas tomadas de posição estavam, no entanto, longe de reflectir as atitudes maioritárias da hierarquia eclesiástica católica, que só em 1960, pela tímida e flébil voz do cardeal Feltin, considerará que a tortura «não será nunca admissível para uma consciência cristã».

François Jeanson, intelectual comprometido no auxílio à Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina em plena luta pela independência, não se desviava, há quatro anos, do nó do problema: «Não compreendo que se ponha hoje a questão da tortura sem pôr a questão da guerra colonial. São duas questões indissociáveis. Parece dizer-se que, se a guerra pudesse ter dispensado a tortura, teria sido justificada. Para mim, é o contrário. A tortura não podia ser senão um dos aspectos dilacerantes desta situação. A verdadeira questão é: porque fazíamos nós a guerra ao povo argelino? Em nome de que interesses?» E, mencionando «as violações e os campos de concentração, que faziam parte da guerra da mesma forma que a tortura», salienta o papel desempenhado no conflito pelo «lobby dos colonos». Não esquecendo uma frase que ficará célebre mais tarde, porque pronunciada sílaba a sílaba pelo ambicioso ministro francês da Justiça em 1957, um certo François Mitterrand: «Na Argélia, a única solução é a guerra.»

Os franceses haviam frequentado a «escola» da Indochina e os seus centuriões transplantaram para a Argélia muito de que lá tinham aprendido, cientes da eficácia dos resultados das torturas utilizadas contra prisioneiros de guerra capturados às forças comandadas pelo lendário general Giap. Tal como os norte-americanos aplicam agora conhecimentos adquiridos no Vietname aos resistentes iraquianos ou aos islamitas internados à força em Guantánamo e os israelitas adaptam métodos de que os judeus foram alvo por parte da Gestapo às circunstâncias do seu confronto com os palestinianos. A infâmia não podia ter ido mais longe: filhos e netos das vítimas de ontem são hoje os arrogantes carrascos de um povo que esbulharam dos seus direitos, terras e liberdade.

Os tempos mudam, é bem certo, mas nada parece depender de princípios morais; dir-se-ia que tudo se confina à dinâmica de condições históricas bem concretas e independentes das ideologias.

Há que (re)ler este aterrador livro de Henri Alleg: não só para nunca esquecer que as condutas desumanas não variaram assim tanto nas últimas décadas, como para reforçar a ideia de que mesmo países considerados civilizados e regimes tidos por democráticos estiveram por vezes longe de respeitar os excelsos princípios morais que apregoaram em textos programáticos e em areópagos internacionais. Não apenas para que conste, mas para que, um dia, deixe de constar.

Henri Alleg, «A Questão», Mareantes Editora, 2004, 102 páginas