Cavalcanti Filho («Fernando Pessoa - uma quase-autobiografia»)

Desalento e morte de Fernando Pessoa

António Rego Chaves

Este longo ensaio foi sem dúvida concebido com amizade extrema, com devoção, com paixão sem quebras. Só assim poderia o advogado brasileiro Cavalcanti Filho ter levado a cabo a gigantesca tarefa de nos oferecer uma panorâmica tão vasta e fluida, tão empática e rigorosa, tão emocionada e emocionante, da vida de Fernando Pessoa. Trabalhou oito anos nesta «quase-autobiografia», que vem complementar as biografias assinadas por João Gaspar Simões, Octavio Paz, Ángel Crespo e Robert Bréchon. Em boa hora o fez, até porque não escreveu «só para especialistas» e assim logrou captar um grande número de leitores – já foi lido por dezenas de milhares no seu país.

Fechamos o livro, depois de «devoradas» uma a uma as suas sete centenas de páginas, com a mesma sensação de mágoa que foi experimentada pelo autor: faz-nos falta essa voz que em vão nos esforçamos por merecer, que viveu uma vida e morreu uma morte gloriosas. Incomparável analista e dissecador da condição humana, acabaria no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, talvez com a mão maternal de Ophelia levemente pousada na sua fronte (como sugere o autor com base em declarações da própria, em 1985, ao jornalista brasileiro Ronald de Carvalho). A sua passagem pela Terra quase foi discreta, tímida, flébil: mas ele é de facto, como em 1983 assinalou Eduardo Lourenço, o «rei da nossa Baviera de sonho». Pela sua subtileza, pela sua perspicácia, pela sua genialidade.

Cavalcanti Filho narra passo-a-passo o percurso do poeta – um poeta que, aliás, escreveu uma das mais importantes obras em prosa alguma vez publicadas em todo o mundo, «O Livro do Desassossego», texto «niilista» a decifrar com intensidade no mínimo idêntica àquela com que se estudam as obras de E. M. Cioran – e acompanha-o no quotidiano, desde o Largo de São Carlos, onde nasceu em 1888, passando por Durban, de 1896 a 1905, até Lisboa, onde (sobre)vive até à morte, em 1935. Dirá, na sua última frase escrita: «I know not what tomorrow will bring.» Ou seja, num inglês arcaico, bíblico, o que traduziríamos por: «Não sei o que amanhã trará.» Decerto não sabia e sabia que não sabia. Nunca teve, é certo, a pretensão de deter o segredo, se é que segredo existe, do que se passa depois da morte…

O leitor interessado encontrará no final desta recensão uma enumeração dos temas abordados no livro. Desejaríamos, no entanto, chamar-lhe uma atenção muito particular para capítulos como «O desalento» e «O fim», que talvez encerrem muito do que de essencial há a dizer, não sobre a obra, mas sobre a existência desse homem literalmente extraordinário que foi Fernando Pessoa. Aí se encontram dados indispensáveis, aliás já indiciados em páginas anteriores, para se entender as razões do insuperável desalento daquele que foi, segundo muitos, «o maior poeta da língua portuguesa».

Não será de mais repeti-lo, nunca se tornou fácil aos nossos grandes escritores viver em Portugal – e não apenas por motivos estritamente económicos. O cerco aos homens e às mulheres que se afastam da óbvia norma gregária vigente está longe de ser invenção de alguns delinquentes incapazes de se adaptar ao ramerrão dos hábitos instituídos na sociedade em que vivemos: as fugas aos padrões de comportamento pagam-se cá em geral por um alto preço e nunca se perdoou aos grandes homens e às grandes mulheres serem o que de facto são – precisamente, GRANDES.

Disse o próprio poeta: «O que um génio pode esperar dos seus conterrâneos é o desprezo» e «nada prejudica tanto um homem na estima dos outros quanto o senso de que ele pode ser melhor que eles. O desapreço, incolor como é, assume uma tonalidade de inveja. A hesitação no saber que um homem pode ser melhor que nós é tão enervante como se alguma coisa desagradável nos possa acontecer». (…) «Um pequeno génio ganha fama, um génio ainda maior ganha despeito, um deus ganha crucificação.»

O «rei da nossa Baviera» foi, como seria de esperar, vítima da ocidental praia lusitana. Sentindo-se um «intervalo» entre o que era e o que não era, entre o sonho e o que a vida fez de si, tomou a sua existência como «uma estalagem» onde tinha de se «demorar» até que chegasse «a diligência do abismo». As suas palavras soam-nos hoje como uma mancha infamante de que o país mesquinho que o viu nascer não soube libertar-se com dignidade enquanto ele viveu: «Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho.»

O seu desalento funde numa mesma mágoa Portugal e ele próprio: «Lenta, a raça esmorece, e a alegria/É como uma memória de outrem.» (…) «Pesa em nós o passado e o futuro./ Dorme em nós o presente.» (…) «Tanto, tanto! Que é feito de quem foi? /Ninguém volta?/Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.» Tudo como hoje, nesse já longínquo ano de 1935…

-- -

Estrutura da obra: Prefácio. ACTO I – Em que se conta dos seus primeiros passos e caminhos: O paraíso perdido; África Branca; Regresso a Lisboa; Um cavalheiro de triste figura; Temperamento feminino, inteligência masculina; Ophelia Queiroz; O general bêbado, o Narciso do Egipto, o Adivinhão Latino e outros amigos; Sá-Carneiro. ACTO II – Em que se conta a arte de fingir e seus heterónimos: O poeta é um fingidor; Origem dos heterónimos; Os heterónimos; Alberto Caeiro; Ricardo Reis; Álvaro de Campos; Alexander Search; Bernardo Soares; Fernando Pessoa; Biografia dos 127 heterónimos. ACTO III – Em que se conta dos seus muitos gostos e ofícios: Pessoa e o Brasil; Os sabores de Pessoa; Os lugares em que mora; Os escritórios; As muitas profissões do «Sr. Pessoa»; Os livros; As revistas; Aleister Crowley; O mundo esotérico; A Maçonaria; O Supra-Camões; A lenda de D. Sebastião; Novos tempos. ACTO IV – Em que se conta do desassossego e do seu destino: Mensagem; Museu de Cascais; Um caso clínico; A espantosa lucidez da bebida; O desalento; O fim; De que morreu Pessoa?

José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa/uma quase-autobiografia, Porto Editora, 2012, 710 páginas