Coisas do Diabo

António Rego Chaves

«Semanário de crítica literária e artística», depois «semanário de literatura e crítica», surgido em 2 de Junho de 1934 e extinto a partir de 21 de Dezembro de 1940, «O Diabo» não se limitou a agitar a nossa vida cultural: quando foi proibido pela Censura era já um firme porta-voz da «ortodoxia» comunista, espalhando por Portugal a mensagem neo-realista.

O periódico foi dirigido sucessivamente por Ferreira de Castro, Rodrigues Lapa, Braz Burity, Adolfo Barbosa, Adolfo Casais Monteiro, Guilherme Morgado e Manuel Campos Lima. Nele colaboraram grandes nomes da cultura e da política das mais diversas ideologias, como Abel Salazar, Agostinho da Silva, Álvaro Cunhal, António José Saraiva, António Sardinha, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Bento de Jesus Caraça, Brito Camacho, Câmara Reys, Castelo Branco Chaves, Diogo de Macedo, Fernando Lopes Graça, Fernando Namora, Fernando Piteira Santos, Irene Lisboa, Jaime Brasil, João de Barros, João Gaspar Simões, João José Cochofel, José Rodrigues Miguéis, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Rolão Preto, Stuart Carvalhais, Teixeira Gomes, Vasco Magalhães-Vilhena, Vitorino Magalhães Godinho ou Vitorino Nemésio.

«O Espírito do Diabo – Discursos e posições intelectuais no semanário O Diabo, 1934-1940» traça a trajectória do periódico, esmiuçando o caminho percorrido desde a fundação até à proibição, um período que abrangeu não apenas a formação da Frente Popular em França e em Espanha, como a Guerra Civil que devastou este último país, o Pacto Germano-Soviético e o início da Segunda Guerra Mundial – ao mesmo tempo que endurecia a ditadura de Salazar, de alguma forma legitimada pela Constituição de 1933.

Acresce que, na União Soviética, sob a tirania de Estaline, o regime encontrara já, pela voz do tristemente célebre Jdanov, um dogmático «dever ser» em matéria de arte e literatura, ou seja, o «realismo socialista». O Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, realizado em Moscovo em 1934, fora, segundo releva Carlos Reis, «dominado por ideólogos como Jdanov, Gorki e Radek, e pela intenção de colocar a prática literária na dependência directa do pensamento e da acção política de Estaline.» Seriam assim impostos, nomeadamente, o conteúdo social da obra literária, o repúdio de qualquer espécie de subjectivismo ou formalismo e a concepção do escritor como esforçado «engenheiro de almas», com a indeclinável missão de guiar a sociedade até ao socialismo.

Neste contexto se pode hoje apreciar, como faz Luís Trindade, o movimento cultural neo-realista, na prática escolhendo entre a «Política do Espírito» do salazarista António Ferro e o estalinismo, muito embora alguns dos seus mais lúcidos teóricos, como João José Cochofel ou Mário Dionísio, recusassem optar por um rígido «conteudismo» em detrimento do duro trabalho do cultivo da forma. Diz o autor: «O número 222, no final de 1938, marcou o ponto de viragem: tal como para os marxistas franceses da revista ‘Commune’, à nova concepção da cultura não bastava conhecer melhor as ideias: era necessária a sua materialização.» Não se admitiria, pois, pensamento sem acção, teoria sem a consequente prática política.

Escreve o ensaísta: «O activismo era o novo pressuposto para a identificação entre os intelectuais. Já não bastava perfilharem a oposição ao irracionalismo, à tradição ou à religião. Era necessário que agissem como opositores ao regime.» Obviamente que estas tomadas de posição em nada contribuiriam para alcançar um simulacro sequer de unidade da resistência anti-salazarista, pois «as posições tomadas a favor da União Soviética tinham criado uma ruptura nova dentro da própria esquerda, as quais isolariam ‘O Diabo’ no seu último ano de vida, proscrito até pela esquerda tradicional, sobretudo por aquela representada pela ‘Seara Nova’». Observa José Pacheco Pereira, na sua biografia de Álvaro Cunhal: «O jornal não poderia ter saído durante tanto tempo com um conteúdo tão claramente pró-soviético sem ser patente que ao regime interessou a sua publicação. As posições do PCP, da IC [Internacional Comunista] e da URSS provocaram de tal maneira a divisão da oposição [sobretudo depois do Pacto Germano-Soviético] que interessava ao regime que fossem conhecidas.» A matreira insinuação do político fica longe de explicar a posterior proibição do jornal.

As hostilidades entre ‘O Diabo’ e a ‘Presença’, abertas praticamente desde o início da publicação do primeiro, poderiam ser justificadas, para além do confronto entre as personalidades dos respectivos mentores, pela seguinte apreciação de Rodrigues Lapa, expressa em 1935, sobre a revista: «um jornal exclusivamente literário, dedicado e para um reduzido cenáculo modernista, para o qual a literatura é uma divina recreação – e é só literatura.» A resposta da «Presença», inserida precisamente no número de Dezembro de 1935 em que anunciou a morte do mais ilustre dos seus colaboradores, Fernando Pessoa, não tardou: «apregoar a ‘utilidade’ da arte foi sempre uma cómoda maneira de a desprezarem aqueles que todavia não têm consciência de como a desprezam.» A conversa parecia acabada – mas estava longe disso. Indignado, Lopes Graça deixou de colaborar no semanário. Mas a «Presença» – honra lhe seja feita – publicaria, em 1938, poemas de Fernando Namora, João José Cochofel e Mário Dionísio.

Conclui Luís Trindade: «O neo-realismo, perseguido pela ditadura enquanto cultura de protesto e de libertação, assimilou uma superioridade moral que o tornou hegemónico. Assim, enquanto o comunismo nunca seria em Portugal no século XX uma ideia politicamente maioritária, e enquanto o nacionalismo salazarista se vai esboroando até à instauração de uma democracia praticamente unânime na sociedade portuguesa em 1974, o neo-realismo institui-se como cultura politicamente dominante: foi a experiência estética da maioria dos oposicionistas, mas foi também a experiência política possível para muitos portugueses, não necessariamente contrários ao regime e que leram e absorveram o imaginário de protesto dos discursos literários.» Talvez, mas quase tudo isto fica por demonstrar…

Luís Trindade, «O Espírito do Diabo», Campo das Letras, 2004, 269 páginas