Musil/«O Homem sem Qualidades»

Do real ao possível

António Rego Chaves

Intensa claridade invade este labiríntico ensaio que não é apenas um ensaio, este labiríntico romance que é bem mais do que um romance: uma vez percorridas mais de oitocentas páginas, tão inteligentes mas por vezes tão áridas, inseridas no contexto do Império Austro-Húngaro, surge-nos Agathe, «a irmã esquecida» de Ulrich. O engenheiro Musil abre caminho ao poeta Musil e ambos procuram uma «utópica» síntese: o poeta Musil [ainda] não pode ou [ainda] não sabe, contudo, arredar da narrativa a ironia e os sarcasmos do engenheiro Musil. E, tal como Ulrich não desiste de uma radical viragem que o conduziria ao encontro consigo e à fusão com Agathe, esta esforça-se por unir estilhaços do seu passado à magia do presente a dois por que se sente envolvida e habitada. Assim fluem desde então os dias, dir-se-ia que protegidos pelo suave olhar de Ísis e Osíris.

É pois tempo de incesto entre o irmão e a irmã. Importa acentuar que, também na católica Áustria, «o amor que é só o amor é já o inferno»; sobre «partes alíquotas de dois na cama» outros dissertavam na época: os que, desde os inícios de novecentos, centravam a atenção numa ciência em voga, a sexologia. Mas não é disso que se trata entre Ulrich e Agathe: de «hormonas», glândulas, cromossomas, zigotos, secreções internas, de «pulsões sexuais», de um «erotismo imaginativo e harmonioso» ou de «potencial erótico», de «inferioridade fisiológica do homem», de «análise crítica do abraço», «de «zonas erógenas», de «caminhos para a satisfação da mulher». Nada disso – ou tudo à margem disso, se assim quiserdes.

Seria viável encontrar uma fórmula para descrever a demanda do Graal nas circulares hesitações de Ulrich e na indisfarçada impaciência de Agathe durante os seus «diálogos sagrados» e «o respirar de um dia de Verão», algumas das mais belas páginas de toda a história da literatura? Assentemos numa hipótese «provisoriamente definitiva»: «o desejo de, pelo amor mútuo, viver numa condição terrena tão sublime que só seria possível sentir e fazer aquilo que pudesse potenciar e manter esse estado». Fórmula «provisoriamente definitiva», seja então, sob a égide de um amor entre dois siameses «voluntários» pela alma e da rejeição do resto do mundo, de um asco mais ou menos consciente à nobreza em decadência, à burguesia detentora dos poderes económico e político, às ululantes massas populares em ascensão. Estaria aqui o germe de uma genuína «aristocracia do espírito»?

Aristocratas do espírito, estes irmãos que invocam Ísis e Osíris? E por que não secretos cúmplices do Jonh Ford de ‘Tis Pity she’s a Whore», do Jean Cocteau de «Les Enfants terribles», do Thomas Mann de «O Sangue dos Walsungs»? Uma «aristocracia do espírito» do homem diferente e da mulher diferente, da família outra («Famílias, odeio-vos!», clamara André Gide): dois vivendo «protegidos por placas de cristal – de modo nenhum na irrealidade sem vista para o mundo, antes numa luz invulgar, nítida».

Meditação de Ulrich, quando os dados já estavam, é de crer, mais que lançados: «Hoje só existe amor sexual; entre iguais pode ser que os parceiros se detestem, e nos cruzamentos sexuais as pessoas amam-se com uma revolta crescente contra a importância excessiva dada a esta compulsão. O amor seráfico, esse está livre de ambas as coisas. É o amor liberto das correntes opostas das aversões sociais e sexuais. Este amor, que se sente por toda a parte acompanhado da crueldade da vida de hoje em dia, poderia, na verdade, apelidar-se de amor sororal de uma época em que não há lugar para o amor fraternal.» Observação [muito] empática do «voyeur» - narrador: «Sentia-se longe de todo o desejo e talvez perto do amor.»

Agathe, para o irmão: «Conheces o mito que Platão refere a partir de fontes mais antigas, segundo o qual o ser primitivo, inteiro [o andrógino] terá sido dividido pelos deuses em duas partes, homem e mulher? Agora, essas duas infelizes metades fazem toda a espécie de disparates para voltarem a unir-se.» Os dados já estavam – oh se já estavam! – mais que lançados.

Faltava a sugestão de uma simbólica ponte entre o real e o possível, que só por distracção poderá ser tida por irónica – e será Ulrich a criá-la, com a aquiescência de Agathe: «Declaramo-nos gémeos. Criaturas simétricas dos caprichos da natureza, passaremos a partir de agora a ter a mesma idade, a mesma altura, a mesma cor de cabelo, e andaremos pela rua dos homens com a mesma roupa às riscas e o mesmo laço por baixo do queixo. Mas aviso-te já de que vão olhar para nós meio comovidos, meio trocistas, como sempre que alguma coisa lhes vem lembrar os mistérios da sua evolução.»

Podemos concentrar-nos no que a Ulrich e Agathe se refere, mas não sem recordar um dado biográfico do autor, que teve de facto uma irmã, uma irmã que morreu antes de ele nascer. Isso não o impediu, contudo, de especular sobre o ser que nunca chegou a conhecer. Escreveu: «Essa irmã interessava-me. Pois não me acontecia pensar: e se ela ainda estivesse viva? Seria dela que eu estaria mais próximo? Identificar-me-ia com ela?» Proust reprovaria esta nossa «inconfidência»; quanto a Sainte-Beuve, como é dos livros, não deixaria de vincular um «eu interior» à obra de Musil.

Uma catedral de letras como esta, com tantos milhões de caracteres, que levou cerca de quarenta anos a edificar e cujos esteios filosóficos serão porventura Ernst Mach e Nietzsche, não pode ser mais do que assinalada ao seu visitante, que em vão nela buscará explicação para todas as imagens aí presentes ou uma plena decifração das gárgulas que o interpelam. Mas o intruso não deixará de sentir ímpetos de a ela regressar, percorrendo as suas amplas escadarias de mundos possíveis – talvez porque, para Musil como para outros seus gigantescos coetâneos da Cacânia, como Rilke, Trakl, Broch ou Kafka, todos os caminhos conduziriam a uma infindável interrogação acerca do homem possível e do seu terrífico mundo real.

Robert Musil, «O Homem sem Qualidades», Dom Quixote, 2008 e 2009, três volumes, 843+451+538 páginas