A histeria e a cegueira (Oriana Fallaci)

António Rego Chaves

Foi ruidosa a polémica causada pela obra escrita por Oriana Fallaci logo após o ataque às Twin Towers, em 11 de Setembro de 2001. Com o título a «A Raiva e o Orgulho», a «prima donna» do jornalismo italiano deu à luz, muito «a quente», um livro que pecava pela excessiva emotividade na exposição dos factos, pela inconsistência da sua explicação, pela parcialidade dos juízos de valor expressos. Ao pegarmos neste seu novo texto, suscitado pelo mesmo tema, esperaríamos, não apenas que a autora se tivesse retractado de afirmações incompatíveis com a honestidade intelectual exigível a quem escreve e publica, mas também que tivesse corrigido os erros de perspectiva que antes a impediram de transmitir uma versão verosímil da complexa realidade acerca da qual pretendia esclarecer os seus leitores. Nada disso. «A Força da Razão» reitera e amplifica os vícios evidenciados no volume anterior, apesar de o tempo já decorrido e de a sua elaboração se ter verificado, certamente, bem mais «a frio». À lamentável histeria de «A Raiva e o Orgulho» veio agora acrescentar-se a intolerável cegueira de «A Força da Razão».

Lamentável histeria e intolerável cegueira que a fazem amalgamar sem os distinguir os muçulmanos em geral, os imigrantes muçulmanos em países ocidentais e os terroristas muçulmanos responsáveis por atentados em todo o mundo; lamentável histeria e intolerável cegueira que a fazem classificar como «patetas do politicamente correcto», «imbecis», «cúmplices», «colaboracionistas» ou «traidores» todos os «cobardes» e «hipócritas» pacifistas que ousaram erguer a voz contra a injustificada ocupação do Iraque pelas tropas dos Estados Unidos; lamentável histeria e intolerável cegueira que a fazem aderir sem reservas a um primarismo maniqueísta incapaz de ver no islamismo mais do que o Mal Absoluto que é imperativo erradicar a todo o custo, se necessário recorrendo à violência, das sociedades «civilizadas». Tudo isto em nome da (sua) lei, da (sua) ordem, da (sua) sangrenta «pax americana».

A intolerância, a fanática islamofobia e o racismo de Oriana Fallaci não conhecem fronteiras: não se abstém de alimentar a discriminação, o ódio e a violência contra milhões de imigrantes que, tantas vezes com risco da própria vida, abandonaram os seus países de origem e vieram procurar trabalho, liberdade e uma existência digna no continente europeu; atreve-se a sustentar que o Alcorão nunca pregou senão o ódio e que qualquer teólogo do Islão pode explicar que, para defender a fé, é admissível a mentira, a calúnia, a hipocrisia; proclama que «os filhos de Alá se reproduzem como ratos» (macaqueando sem brilho o asqueroso anti-semitismo do genial Céline) e que «há qualquer coisa nos homens árabes que repugna às mulheres de bom gosto». Medite-se em mais esta delicada pérola de laica sobranceria: «Não faço nenhuma tenção de ser castigada por bárbaros que, em vez de trabalharem e de contribuírem para que a humanidade melhore, estão sempre de rabo para o ar, isto é, a rezar cinco vezes por dia.» Lê-se e pasma-se, vindo de quem vem, uma sofisticada grande senhora italiana, há anos refugiada na elegante ilha de Manhattan...

«A Europa está a tornar-se cada vez mais uma colónia do Islão» (…) «Não compreendeis nem quereis compreender que está em marcha uma Cruzada às Avessas. Uma guerra de religião a que eles chamam Jihad, Guerra Santa. Não compreendeis nem quereis compreender que, para eles, o Ocidente é um mundo a conquistar, a castigar, a dobrar ao Islão.» (…) «O confronto entre nós e eles não é militar. É cultural, é intelectual, é religioso (a colisão que há entre os países democráticos e os países tirânicos). E as nossas vitórias militares não acabam com a ofensiva do terrorismo. Pelo contrário, encorajam-no, exasperam-no e multiplicam-no. E o pior para nós ainda está para vir: eis a verdade. E a verdade não está necessariamente no meio. Por vezes está só de um lado.» Em conclusão, desafia e provoca os muçulmanos: «Quisestes guerra, quereis guerra? Por mim, venha ela. Até ao último suspiro.» Esperemos que este não seja o último suspiro da Fallaci e que o tempo ainda lhe dê ocasião para recordar que o terrorismo islamita de Bin Laden nasceu e foi financiado e armado no Afeganistão, após a invasão soviética de 1979, por obra e graça dos EUA e dos seus aliados, abrindo caminho, após a Guerra do Golfo, em 1991, aos mortíferos atentados anti-ocidentais ocorridos no Sudão e no Quénia (1998), no Iémen (2000), em Nova Iorque (2001) e em Madrid (2004).

É certo que a «prima donna» acalenta ódios viscerais: ódio a Yasser Arafat (mesmo depois da sua inexplicada morte?), ódio à URSS (mesmo depois da sua pretensa «implosão»?), ódio ao marxismo e aos marxistas (mesmo depois de assinada a sua certidão de óbito pelo neoliberalismo triunfante?). Mas precisaria de chegar tão longe na incontinência verbal? A verdade é que ambicionava ajustar outras contas pessoais, com deputados, senadores, escritores, sindicalistas, jornalistas, banqueiros, prelados, historiadores, filósofos, cineastas, editores, magistrados, professores, em suma, com todos os que se opunham e opõem publicamente ao morticínio no Médio Oriente. A aguerrida Fallaci nunca lhes perdoará: aceita sem pudor o imperialismo norte-americano e o colonialismo israelita em Gaza e na Cisjordânia, ataca aquilo a que chama «Santo Ofício da ONU», revela-se mais papista que o Papa e ainda quer justificar as Cruzadas medievais. Retoma o seu histérico e cego delírio: «O Alcorão é o novo Das Kapital, Maomé o novo Karl Marx, Bin Laden o novo Lénine, e o Onze de Setembro a nova Tomada da Bastilha?» E, imagine-se, até fala de uma «Tríplice Aliança» entre a Direita, a Esquerda e a Igreja Católica, que teria entregado a Itália ao inimigo, isto é, ao Islão. Que impudica manipulação!

Nada escapa à obsessão anti-muçulmana da Fallaci, para quem «o Islão é um pântano» que ama a Morte, ao passo que «o Ocidente é um rio» que ama a Vida. Proclama o seu ódio à União Europeia, ao ecumenismo, às associações católicas italianas que tratam do asilo político dos imigrantes, ao pacifismo, ao anti-imperialismo, ao terceiro-mundismo, ao anti-sionismo, ao humanitarismo. Para a intolerante «prima donna» do jornalismo italiano, essa é a Europa doente, a «Eurábia», sendo ela uma lídima representante da sanidade mental do Velho Continente. Pena que não esteja orgulhosamente só com a sua arrogância.

Oriana Fallaci, «A Força da Razão», Difel, 2004, 301 páginas