«A Paixão de Schopenhauer» (Christoph Poschenrieder)

O homem que carregava o mundo

António Rego Chaves

Vender-se-á este livro mais por se chamar em português «A Paixão de Schopenhauer» – e não «O Mundo Está na Cabeça», tradução exacta do nome que lhe deu o autor, «Die Welt ist im Kopf»? É possível que sim e que alguns amadores e amadoras do romanesco considerem «apelativo» o isco lançado a «românticos» de todos os azimutes, porventura ainda saudosos de outros títulos onde também surge o mágico vocábulo que designa «um sentimento muito intenso que se impõe de forma exclusiva».

A verdade, porém, é que a presente obra de Christoph Poschenrieder não consagra largo espaço a qualquer «paixão» ou paixoneta vivida por Schopenhauer – sendo certo que a existência de uma «namorada» chamada Teresa, como terá sido o caso, não supunha uma concentração exclusiva da atenção do filósofo sobre a mulher com quem teve «um caso» em Veneza, onde celebraria o seu 31.º aniversário em 22 de Fevereiro de 1819. Acresce que, se existia alguma obsessão na cabeça do jovem Arthur Schopenhauer durante o período em que permaneceu na cidade então ocupada pelos austríacos «devoradores de almôndegas», essa encontrava-se toda dirigida para a iminente publicação da sua obra-prima, «O Mundo como Vontade e como Representação», cuja saída do prelo aguardava com uma permanente e obsessiva ansiedade, portanto bem próxima do que se chama «paixão».

O pensamento de Schopenhauer sobre o tema da sexualidade encontrava-se, aliás, já definido com a maior clareza num único capítulo do último tomo de «O Mundo como Vontade e como Representação», com o título «Metafísica do Amor». Nele sustentava, sem a mais ténue sombra de espírito romanesco, que o fim do amor é simplesmente a procriação de uma determinada criança e que a natureza do instinto sexual é actuar no interesse da espécie, à custa do indivíduo. Quanto ao casamento, não poderia ser mais céptico e categórico: «Começam então os dias, tanto os bons como os maus, são apenas dias que passam, num consentimento de duas pessoas que tendem a afastar-se, seguindo por caminhos separados, de tal maneira que em breve já não conseguem dar a mão, pois a distância entre elas tornou-se demasiado grande. Tornam-se insensíveis uma à outra. A qualquer momento, o mal de uma é a libertação da outra.»

Mas a personagem «Schopenhauer» criada por Poschenrieder, «ora mais, ora menos, inventada», não está só preocupada com a publicação das suas ideias. Obrigada a descer ao dia-a-dia devido a inesperadas preocupações financeiras, teme perder os seus haveres, que lhe garantiriam um futuro sem sobressaltos: «Viu-se a si próprio como professor efectivo a ensinar a evidência de Deus e disparates semelhantes, a Filosofia como serva da Teologia, a si próprio como servo de um soberano hipócrita, um ministro. Talvez fosse inclusivamente obrigado a divulgar a loucura de Fichte, os disparates de Hegel.» (…) «Seria o fim da sua liberdade filosófica. Sem liberdade não havia felicidade. Sem dinheiro não havia liberdade.»

Como lembra o autor, é verdade que Schopenhauer partiu em viagem para Itália no Outono de 1818 e que visitou Veneza, onde Byron então vivia. É verdade que teve na cidade uma meteórica namorada chamada Teresa, tão verdade como Byron ter tido uma relação duradoura com uma outra Teresa. É verdade que Schopenhauer recebeu uma carta de recomendação de Goethe, mas não há certeza quanto a quem era dirigida. A partir de tais factos, diversas conjecturas são possíveis: A carta de recomendação assinada por Goethe, que Schopenhauer levava, era dirigida a Byron? Em caso afirmativo, foi-lhe entregue? Ou não lhe foi entregue, porque o filósofo sentiu medo de que o poeta inglês lhe «roubasse» a namorada?

O romancista diverte-se assim – e em princípio também diverte o leitor – construindo uma moldura aonde, aqui e ali, vai inserindo um apontamento sobre Goethe, ou sobre Byron, ou sobretudo sobre Schopenhauer, ou, até, sobre a Veneza subjugada pelos austríacos, numa época em que o príncipe Metternich não era ainda o chanceler do Império dos Habsburgos, mas apenas o seu muito hábil ministro dos Negócios Estrangeiros. Recorda que Goethe recebeu Schopenhauer em Weimar, que discutiu com ele a teoria das cores e que foi em casa do autor do «Werther» que o jovem filósofo travou conhecimento com Friedrich Maier, que lhe revelaria os Upanixades. Quanto a Byron, sabe-se que a sua estada em Veneza, iniciada em 1816, se prolongou por cerca de três anos; foi então que começou a escrever o seu «escandaloso» poema «Don Juan» e se ligou burguesmente à sua amada Teresa Guicciolli, filha do Conde Gamba de Ravena.

Discutindo a teoria das cores com Goethe, Schopenhauer ter-lhe-ia dito, mais kantiano do que Kant: «Sem um olho que reconheça esse objecto, não haveria absolutamente cor nenhuma, nenhum objecto, nenhuma luz.» Goethe teria recusado a asserção: «Não, não, não. Você não estaria aí se a luz não o visse.» O jovem, porém, já sabia o que tinha a dizer, na sequência do autor da «Crítica da Razão Pura»: «O mundo é a minha representação.» (…) «Vocês não conhecem nem um Sol nem uma Terra, só conhecem um olho, que vê um Sol, e uma mão, que sente uma Terra. Tudo isto não passa da vossa representação. Apenas representação. Tudo representação.»

O recurso ao diálogo (fictício) aprofunda o pensamento de Schopenhauer:

« – Explicas-me o teu livro? – perguntou Teresa, gesticulando com a colher na direcção da estante dos livros.

– É apenas um único pensamento – disse ele.

– Por isso, o resultado foi um livro grosso.

– Eu digo: o mundo está na cabeça.

– A cabeça está no mundo.

– O livro diz por que é que a cabeça, que está no mundo, pode afirmar que o mundo está na cabeça.»

Dito com ternura, com pesar, talvez mesmo com a secreta angústia de um grito de socorro longamente abafado: «Aquele que reconhece tudo e que não é reconhecido por ninguém, é o sujeito. É o que carrega o mundo.»

Christoph Poschenrieder, «A Paixão de Schopenhauer», Saída de Emergência, 2011, 280 páginas