A lição do Maio de 68 (A. J. Saraiva)

António Rego Chaves

Estamos em Maio, mês da abortada «revolução cultural» francesa de 1968. Boa altura para reler este livro de António José Saraiva (AJS), que põe em causa a «civilização burguesa», tendo presente que Chirac não esqueceu neste Abril a lição recebida por De Gaulle. Lançou às urtigas o iníquo Contrato do Primeiro Emprego, contestado nas ruas por estudantes e pela totalidade das centrais sindicais, evitou o pior, arrumou o «caso».

Convenhamos: houve dois AJS, o estalinista da «História da Cultura em Portugal» e o antiestalinista – e mesmo anticomunista e antimarxista – que se nos revela nesta obra. Sem rodeios, só o primeiro não é obscuro. Porquê? Porque é coerente. Será a coerência um valor supremo? Seja qual for a resposta, o problema era de peso e era político no Portugal de 1969 e 1970, datas em que a obra foi editada em Portugal, durante o consulado de Marcelo Caetano, sem que as autoridades a tivessem honrado com a apreensão, ao contrário do que sucedera com o incómodo «Dicionário Crítico».

«O Cristianismo, nas entranhas do seu espírito, tal como o definiram Cristo e S. Paulo, é incompatível com a mentalidade burguesa, porque contém uma semente de desmesura mística inconciliável com a contabilização da vida.» A asserção é de AJS. «Burguesia é uma mentalidade correspondente às relações mercantis e ao progresso tecnológico que dominam a civilização burguesa». AJS, oito páginas adiante. «Mesmo que aceitássemos a afirmação de que o marxismo é a ideologia da classe operária, isso só confirmaria que a classe operária assimilou a mentalidade burguesa.» Ainda AJS, quatro páginas depois. Será coerente este conjunto de pensamentos, que implica a impossibilidade de estabelecer um diálogo fecundo entre cristianismo e marxismo?

Acresce que, segundo o ex-estalinista António José Saraiva, a cultura é considerada pelo marxismo uma «supra-estrutura» (sic) ou um «epifenómeno». Mas de que marxismo falava AJS? Em que obra de Marx encontrou esta concepção? Que «cartilha» o levou a propagar tal simplismo, bem mais próximo da soez verborreia do jornal salazarista «Diário da Manhã» do que de qualquer texto assinado pelo autor de «O Capital»? Mistério. Se o estalinismo da geração de 40 lhe retirou durante anos a clarividência, será que o anti-estalinismo o cegava desde 68?

Uma obsessão domina toda esta obra: contrapor a pujante, radical e feérica contestação da «sociedade burguesa» pelo «Movimento 22 de Março», iniciado em Nanterre e simbolizado por Cohn-Bendit, à ancilosada, conformista e baça actuação do Partido Comunista Francês, dirigido por Waldeck-Rochet. A imaginação contra o realismo, o desejo de transformar o mundo com um salto de gigante contra o projecto de ampliar e consolidar, passo a passo, as conquistas sociais do proletariado, a grande «revolução espiritual» contra as tímidas iniciativas de carácter reformista. AJS posiciona-se ao lado dos estudantes, que considerou «o motor da história»: ou tudo ou nada. A gigantesca paralisação de nove milhões de assalariados – «o maior movimento de massas da história de França», «a mais importante greve do movimento operário francês», «a única insurreição geral que conheceram os países ocidentais sobredesenvolvidos desde a Segunda Guerra Mundial», como escreveu recentemente a norte-americana Kristin Ross – não o comoveu, como não o comoveu a estratégia de «passagem pacífica ao socialismo» concebida pelo PCF no quadro da democracia parlamentar, que conduziria Jacques Duclos, seu candidato às presidenciais de 1969, a obter 21,3 por cento dos sufrágios expressos e à elaboração do «programa comum da esquerda» em 1972. Ao lado das vanguardas anarquistas da «contestação permanente», que importavam as cautelas de uma CGT acima de tudo preocupada com os salários e as reivindicações dos trabalhadores? Georges Séguy, líder desta central sindical de maioria comunista, declararia 30 anos depois: «Em Maio de 68 descortinava Cohn-Bendit extremamente longe à minha esquerda, ao passo que hoje o encontro muito longe à minha direita.» Quem o contradiria? Ou quem contradiz que sob este comunismo utópico germinava, afinal, o neocapitalismo, sob a ideologia libertária o neoliberalismo, sob a palavra de ordem «solidariedade» um tirânico individualismo pequeno-burguês? Que se seguiu à derrocada da moral comum ao cristianismo, à república e ao socialismo, senão o «salve-se quem puder» da economia de mercado, o assalto ao Estado-Providência, a «liberalização» dos despedimentos?

Escreveu Eduardo Lourenço: «A geração de 68 julgou possível repudiar – pelo menos oniricamente – a dupla tutela de uma sociedade capitalista e imperialista sem má consciência de nenhum tipo e de uma socialista não menos imperialista e totalitária. Na realidade, não tinha escolha. No final de um mês de protestos teóricos e práticos contra o Sistema – já então centrados na sua cultura universitária catalogada de ‘burguesa’, sementeira de futuros agentes de uma cultura também totalmente burguesa – o Sistema ficou intacto na sua versão capitalista, e praticamente isolado de uma universidade que não se reconhece nele.»

Trinta e oito anos depois, talvez não seja difícil compreender que então esteve em jogo uma clara opção pela «utópica» democracia social e económica. A célebre viagem do general De Gaulle à Alemanha e o seu encontro com o general Jacques Massu, no auge da crise, só podem reforçar a ideia de que o «Sistema» tudo faria para impedir que os comunistas ultrapassassem as reivindicações sindicais que decidira tolerar-lhes. E a intervenção das tropas francesas estacionadas na RFA, com a guerra civil, seria o desfecho lógico do Maio de 68, caso o PCF cedesse à tentação de tomar o Poder. Chirac decorou bem a lição infligida a De Gaulle: meteu na gaveta a lei do CPE, pondo assim termo à agitação nas ruas, e deixou quase tudo como dantes – embora projectando patrocinar a precariedade do emprego «só» para os imigrantes. Que golpe, tendo em vista as presidenciais de 2007 e disputando a Le Pen a bandeira chauvinista!

António José Saraiva, «Maio e a Crise da Civilização Burguesa», Gradiva, 2005, 164 páginas