Violência contra a República (Integralismo Lusitano)

António Rego Chaves

Carlos Ferrão (1898-1979) foi, sem dúvida, um dos grandes nomes do jornalismo português do século XX. Como sublinhou Diana Andringa, «os seus comentários sobre política internacional, publicados durante a Segunda Guerra Mundial (…) foram considerados por Walter Lippmann como ‘dos melhores textos sobre a guerra e sobre a política internacional que se escreveram em todo o Mundo’». Autor de várias obras ligadas àquele conflito bélico, consagrou-se também à investigação do agitado período que decorreu entre 1910 e 1926, integrando-se em tal actividade este estudo sobre as relações entre o Integralismo Lusitano e a República.

Escreveu António Costa Pinto em 1981, mais de duas décadas antes de publicado o livro «Filhos de Ramires» (2004), de José Manuel Quintas, que já analisámos neste espaço: «Símbolo de um combate terminado (República/Monarquia), surgirá em 1964 o primeiro trabalho sobre o tema [do Integralismo Lusitano], da autoria de Carlos Ferrão. Obra que se pretende exaustiva, na qual este não esconde o seu objectivo: provar que o IL é uma cópia aportuguesada da Action Française, no fundo, mero fenómeno de importação com máscara nacionalista. Peça de uma polémica iniciada por seareiros como Raul Proença no seu combate aos integralistas, Ferrão reproduz, no entanto, o essencial da factualidade sobre o tema, ainda que com abundantes imprecisões de pormenor. No campo da historiografia contemporânea, quase todas as obras sobre o período se limitam a recensear o projecto integralista, apresentando lateralmente a sua actuação no campo político. Apenas João Medina, António José Telo e Manuel Braga da Cruz ensaiaram uma proposta analítica.» Fará sentido, então, ler ou reler ainda hoje estes três trabalhosos volumes de Mestre Carlos Ferrão, recheados de dezenas e dezenas de factos ocorridos há quase um século?

Decerto que sim. Não porque possamos sustentar que a tese central de Carlos Ferrão não é contestável – dificilmente se negará, como afirmou em 1979 Manuel Braga da Cruz, que «a proposta integralista era uma proposta de uma monarquia orgânica, tradicionalista e antiparlamentar, onde a base residia no nacionalismo tradicionalista e corporativista, como legitimidade do poder e forma de organização político-social» –, mas porque o longo texto em apreço aborda, não apenas as palavras, mas também os actos de homens como Hipólito Raposo, António Sardinha ou Pequito Rebelo. «O Integralismo e a República» não se limita, pois, a apresentar-nos ideólogos de um movimento radicalmente antidemocrático – revela-nos também a sua prática política, as suas actividades revanchistas, o seu trauliteirismo. Por isso, se quisermos saber o que os integralistas de facto foram entre 1914 e o regime gerado em 28 de Maio de 1926, continua a ser-nos indispensável.

Não basta recordar, como fez José Manuel Quintas, que, em 1918, os integralistas colaboraram com a ditadura sidonista; que, no ano seguinte, participaram na revolta de Monsanto e na Monarquia do Norte, desvinculando-se da obediência que haviam considerado devida a D. Manuel II; ou que, em 1920, integraram a Causa constituída em torno de D. Duarte Nuno. É necessário pôr o dedo na ferida – como fez, corajosamente, em tempos salazarentos, o muito honrado Carlos Ferrão – e denunciar as inumeráveis contradições de Alfredo Pimenta, evocar as reacções de António Sérgio e Raul Proença à ideologia reaccionária dos integralistas, recordar o anti-semitismo de um António Sardinha ou de um Mario Saa – Mario Saa, esse mesmo, hoje tão incensado por numerosos literatos como irrequieto «modernista», mas autor, corria o ano de 1925, de uma infame lengalenga a que significativamente deu o título «A Invasão dos Judeus».

Mas há ainda pior. Ouçamos a voz autorizada de Carlos Ferrão: «Hipólito Raposo nega que ‘os integralistas portugueses, à semelhança dos seus mestres franceses, apelassem para a violência’ em brados de que ficou testemunho imperecível. Ao fazê-lo, no seu livro ‘Dois Nacionalismos’, nega a verdade perante os escritos dos chefes do Integralismo e, sobretudo, nos seus actos. Nunca eles encararam para o problema do regime outra solução que não fosse a da força, nunca a sua acção se orientou fora do caminho dos ataques armados à República que procuraram derrubar, sem ter em conta as consequências dessa atitude, dando, durante a guerra de 1914-1918, a nota de uma irresponsabilidade que foi a negação dos métodos que se atribuíam. Pregaram e praticaram a violência, quando foi possível ou quando os seus interesses políticos a isso os aconselhavam.»

Durante a Grande Guerra, ao mesmo tempo que soldados portugueses morriam em luta contra os alemães, monárquicos germanófilos confessos como António Sardinha, Alfredo Pimenta ou Cabral de Moncada não tiveram alternativa: «obedeceram a D. Manuel II que, sem qualquer ambiguidade, incitava ao cumprimento da aliança com a Grã-Bretanha e ao acatamento da República enquanto durassem as hostilidades». Isto numa altura em que, segundo Carlos Ferrão, «toda a gente sabia que a intervenção militar de Portugal, com os sacrifícios que exigia, se destinava, precisamente, a que, na Conferência de Paz, não fôssemos esbulhados do nosso património ultramarino». Aliás, como não ignorava e dizia o próprio monarca português deposto, os nossos monárquicos eram 95 por cento germanófilos e continuaram a sê-lo após a derrota dos Impérios Centrais.

De facto, a maioria dos talassas portugueses nunca perdoou à Inglaterra ter aceitado, em 1910, a implantação da República, ao mesmo tempo que acreditava numa vitória da Alemanha do Kaiser Guilherme II como um inequívoco sinal do regresso de Portugal à Monarquia. Restava saber quem seria o rei deste cantinho ocidental da Europa – se D. Manuel II, se Afonso XIII de Espanha. Mas talvez não fosse isso o que mais a preocupava…

Carlos Ferrão, «O Integralismo e a República – Autópsia de um Mito», três volumes, Inquérito e O Século, 1964-1965, 278+278+314 páginas