Os fantasmas do Arno (Florença)

António Rego Chaves

David Leavitt não é um desconhecido no nosso país, pelo menos como ficcionista: muitas das suas obras estão já traduzidas para português («Enquanto a Inglaterra Dorme», «Dança de Família», «Martin Bauman ou uma Presa Segura», etc.) e encontram-se catalogadas na literatura dita «gay». O ensaio publicado pela Asa e dedicado a Florença, integrado na colecção «O Escritor e a Cidade» – tal como o consagrado a Paris, já assinalado nestas páginas, da autoria de Edmund White –, pretende informar-nos acerca de muito do que os guias habituais não revelam ao turista e interessar-nos por aspectos porventura desconhecidos pela grande maioria dos que visitam a urbe sem estudar o seu mais recente passado.

Nitidamente dirigido a um público britânico e norte-americano, o texto consagra um espaço privilegiado à colónia anglo-florentina dos últimos cento e cinquenta anos e às obras que alguns grandes escritores de língua inglesa situaram na capital toscana – referimo-nos especialmente a William Dean Howell («Indian Summer»), E. M. Forster («Quarto com Vista»), Henry James («Retrato de uma Senhora»), D. H. Lawrence («A Vara de Aarão») e Mary McCarthy («The Stones of Florence»). Também a tolerância dos florentinos em relação à homossexualidade masculina e feminina – em contraste com a moral e o direito vitorianos, de que Oscar Wilde foi uma das mais célebres vítimas –, levaram muitos «gays» ingleses e norte-americanos a fugir para Florença, de Scott Montcrieff a Harold Acton (o modelo para Antonhy Blanche em «Reviver o Passado em Brideshead), de Radclyffe Hall a Evelin Waugh, de Vernon Lee a Maud Crutwell, de Lord Henry Somerset a Lord Alfred Douglas. David Leavitt afirma, peremptório: «Florença é a única cidade europeia que me ocorre cujos cidadãos mais ilustres, pelo menos ao longo dos últimos cerca de cento e cinquenta anos, têm todos sido estrangeiros.» Não menos categórica – ainda que negativa – foi a opinião expressa por Aldous Huxley, numa carta dirigida a seu irmão, ao decidir mudar-se para Roma: «Depois de uma cidade de província de terceira categoria, colonizada por sodomitas ingleses e lésbicas de meia-idade, que é, afinal, o que Florença é, uma capital cosmopolita será animada.»

Escreve David Leavitt: «Uma cidade com um rio é, por natureza, uma cidade dupla e, nesse aspecto, Florença é aparentada com Paris, Roma e Budapeste. (…) Tal como Roma tem o Trastevere, Paris a sua “rive gauche” e Buda a sua Peste, Florença tem o Oltr’arno – literalmente “além do Arno” –, (…) que, com as suas lojas de discos usados e bares de estudantes, mais do que qualquer outra parte de Florença, lembra o Quartier Latin parisiense...» «Last but not least», há que ter sempre presente que Florença alberga perto de um quinto dos tesouros artísticos do mundo. Um quinto! «Um itinerário florentino meticuloso inclui arquitectura, escultura e pintura, museus grandes (o Bargello e o Uffizzi), mas também pequenos (o Stibbert e o Horne), edifícios públicos, palácios e inúmeras igrejas, obras de Boticelli e Leonardo e Miguel Ângelo e Giotto e Masaccio e Beato Angélico e Gozzolo e Pontormo e Donatello…» Daí «a síndroma de Stendhal»: a superabundância de maravilhas é susceptível de abalar tão fortemente o equilíbrio do visitante mais atento e sensível que ele pode sentir um súbito desejo de regressar às banalidades com as quais já se encontra habituado a conviver todos os dias. Neste contexto se recorda a catástrofe que representou para a cidade-museu a cheia de 4 de Novembro de 1966 e os danos sofridos nessa época por «trezentas e vinte e uma pinturas em madeira, quatrocentas e treze em tela, onze ciclos de frescos, setenta frescos individuais (um total de cerca de três mil metros quadrados de frescos), catorze grupos esculturais, cento e quarenta e quatro esculturas individuais (incluindo várias de Miguel Ângelo), vinte e duas delas em madeira: ao todo, cerca de mil obras da maior importância histórica.» Valeram então à capital toscana os «angeli del fango» («anjos da lama»), isto é, os inúmeros estudantes estrangeiros que, muitas vezes com água até à cintura e tiritando de frio, fizeram seu ponto de honra salvar da completa destruição milhares e milhares de preciosos livros encharcados pelas cheias, retirando-os para o ar e envolvendo-os em papel absorvente. Diz David Leavitt que, «de um forma geral, os florentinos receberam os anjos da lama tão carinhosamente como tinham recebido os soldados libertadores que tinham marchado para a cidade após a guerra…»

Florença é na verdade, como sentenciou Henry James, «um caso delicado». Bastariam alguns dos fantasmas que pairam sobre o Arno – Fra Angelico, Cimabue, Giotto, Donatello, Dante e Beatriz, Savonarola, Galileu, Maquiavel, Dostoievski, Elisabeth Barrett e Robert Browning, Malaparte, Papini – para constituir mesmo um caso desesperado para toda a espécie de turistas, sobretudo para os que tudo ou quase tudo julgarem poder compreender acerca dela durante uns breves dias de lazer, desperdiçados entre algumas apressadas visitas a museus e meia dúzia de «pizzas» e «cappuccinos». Mas não há nada como entrar, ver e abandonar mesmo toda a esperança de desvendar qualquer dos seus grandes mistérios – privilégio que ela apenas parece reservar a alguns dos seus naturais e a muitos dos que tudo deixaram para fazer dela a sua pátria adoptiva.

David Leavitt, «Florença, um Caso Delicado», ASA Editores, 2004, 169 páginas