Roger-Pol Droit («Voltar a Ler os Clássicos»)

Quem lê os Antigos?

António Rego Chaves

Título lisonjeiro para o leitor português, este: «Voltar a Ler os Clássicos». Dir-se-ia que por cá temos por hábito frequentar Homero e Virgílio, Heródoto e Tucídides, Platão e Aristóteles. Roger- Pol Droit foi bem mais realista: limitou-se a chamar ao seu livro «Vivre aujourd’hui avec Socrate, Épicure, Sénèque et tous les autres», pondo de lado a ideia segundo a qual os Antigos já ontem foram lidos e portanto serão hoje relidos. Sensata, prudente opção: já Italo Calvino lembrava que «os clássicos são esses livros dos quais se ouve dizer ‘Estou a reler…’, e nunca ‘Estou a ler’»…

Tudo indicia, de facto, que as humanidades são cada vez mais depreciadas pela generalidade dos nossos coetâneos, para quem Sócrates (que, aliás, nada escreveu), Epicuro (que muitos sempre associam a desbragadas ou requintadas práticas gastronómicas) e Séneca (desastrado pedagogo, a avaliar pelo comportamento do seu mais célebre discípulo, o criminoso imperador Nero, de quem foi preceptor) são pouco mais do que nomes a reter por causa dos exames, vagamente ouvidos nos liceus, entre bocejos.

Não há aqui a «desculpa» da acessibilidade material, pelo menos para quem pode comprar livros de bolso ao preço de um «hamburger» ou tem acesso a um computador. Como salienta o autor, as obras essenciais da Cultura Clássica estão quase todas disponíveis em rede, traduzidas do grego e do latim para as línguas mais usuais. Porque não são lidas, então?

Explica o ensaísta: «A necessidade de ensinar as ciências num mundo cada vez mais técnico era, decerto, imperativa. (…) A matemática foi considerada uma ferramenta de selecção mais eficaz e, sobretudo, mais objectiva, do que as humanidades. Objectiva, porque a ferramenta matemática foi julgada socialmente neutra em relação às heranças culturais e às desigualdades sociais. Todos são iguais, pensava-se, perante uma equação a resolver. Em contrapartida, comentar a batalha das Termópilas e as alucinações de Orestes favorecia aqueles que – por sorte, por herança, por casta – podiam ouvir falar disso à mesa, em casa, ao domingo.»

Conclui Roger-Pol Droit: «Assim, com a virtuosa intenção de restabelecer o equilíbrio, de acabar com a desvantagem patrimonial das classes desfavorecidas, conseguiu-se privar toda a gente – e, em primeiro lugar, os desfavorecidos! – das indispensáveis riquezas humanas dos Antigos.»

Concorde-se ou não com esta tese do contraste entre uma «democrática» matemática e as humanidades «elitistas», a verdade é que o mundo onde vivemos, já iniciado o segundo decénio do século XXI, parece incapaz de assegurar trabalho remunerado aos que desejam dedicar-se às humanidades, encaminhando-os para profissões tidas por mais rendíveis. O resultado, a médio prazo, não será decerto animador para todos os que consideram que temos alguma coisa a aprender com os Antigos, a menos que os gestores que trabalham doze horas por dia passem a ter tempo para ler a «Apologia de Sócrates» redigida por Platão, que os engenheiros electrotécnicos levem para férias a «Carta a Meneceu» de Epicuro ou que os especialistas de informática não prescindam da sageza do Séneca das «Cartas a Lucílio».

Esta obra do autor de «101 Experiências de Filosofia Quotidiana» constituirá decerto um precioso apoio para quem quiser orientar-se e penetrar no inesgotável universo da Cultura Clássica. Cinco capítulos (Viver, Pensar, Comover-se, Governar, Morrer em Paz) encaminham o leitor, com mão de mestre, para as perenes lições de Homero, Virgílio, Epicuro, Zenão de Cício e Pirron (Viver); Heraclito, Demócrito, Platão, Aristóteles e Sexto Empírico (Pensar); Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e Luciano (Comover-se); Sócrates, Diógenes, Demóstenes e Cícero (Governar); Heródoto, Tucídides, Calano e Séneca (Morrer em Paz).

Que nos ensina Sócrates? A examinar ideias, crenças, convicções, tanto as nossas como as alheias, a fim de sabermos se elas resistem a uma análise racional ou se não passam de devaneios sem consistência. Aristófanes dizia que ele corrompia os espíritos, porque punha em causa, como diríamos hoje, o «politicamente correcto». Era verdade, o filósofo não estava mesmo integrado na ordem social estabelecida. Seria sempre um crítico metódico do «statu quo», qualquer que ele fosse. Apontava os defeitos da «democracia» ateniense, o seu pendor para a corrupção, a sua tendência para a prática da demagogia. Pagou caro, com a morte, o atrevimento.

E o Epicuro da «Carta a Meneceu», que pretende do seu leitor? A lição é, também, perene: que viva «como um deus entre os homens». Mas que quer isso dizer? Que faça amainar «a tempestade da alma». Como? Tomando um «quádruplo remédio». Qual a fórmula do medicamento? Simples: não temer os deuses, não temer a morte, procurar os prazeres simples, fugir à dor. Trata-se mais de não sofrer do que de gozar. Gozar é… não sofrer.

«Filosofar é aprender a morrer», diz Sócrates no «Fedro». Séneca foi um bom exemplo dessa sabedoria e obedeceu à ordem de Nero para se suicidar. Estava preparado para morrer porque tinha, ao longo dos anos, meditado sobre a morte. O estoicismo, lembra Roger-Pol Droit, «é em primeiro lugar uma filosofia do agir, do uso, do acto. O essencial é a acção, o que se faz, mais do que as intenções». (…) «Existe um longo fascínio de Séneca pelo suicídio. Devemos poder ser livres de escolher a nossa morte, pensa ele. Da mesma forma que a nossa vida diz respeito aos outros, a nossa morte, a seus olhos, só nos diz respeito a nós.» Para o filósofo romano, o importante não era a extensão de uma existência, o número de anos que ela durava, mas a sua intensidade e, sobretudo, a sua rectidão. Também importava morrer com dignidade. Assim fez, ainda que obedecendo a uma ordem do Poder – aliás à semelhança de Sócrates, que se recusou a fugir e escolheu respeitar as «democráticas» leis atenienses. Eram (grandes) homens livres.

Roger-Pol Droit, «Voltar a Ler os Clássicos», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, 229 páginas