Muita fidalgaria, pouca arraia-miúda («História de Portugal» coordenada por Rui Ramos)

António Rego Chaves

Dizia o primeiro António José Saraiva, o da «História da Cultura em Portugal», que, no reinado de D. Fernando, os mercadores e os mesteirais progrediam em importância e número. E salientava, na esteira do grande Fernão Lopes: «Em Lisboa a sua intervenção consciente e directa nos negócios públicos manifesta-se bem clara, quando ‘bem três mil entre mesteirais e homens de pé e todos com armas se foram aos paços onde El-rei pousava’ e lhe expuseram pela voz de um alfaiate a sua oposição ao casamento do Rei com Leonor Teles. Os mesteirais e homens de pé de Lisboa interpretavam o sentimento dos ‘povos do reino’ que atribuíam a principal responsabilidade ‘aos privados del Rei e aos grandes da terra que lho consentiam’.» Já então, pois, o «Terceiro Estado» dava boa conta de si, fosse erguendo a voz, fosse, caso necessário, empunhando armas próprias.

Se alguma coisa nos impressiona na «História de Portugal» de Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro é que o povo, a arraia-miúda, está ausente. Não está ausente a realeza, a nobreza, o clero: mas o alfaiate e seus companheiros, ascendentes e descendentes incluídos, com armas ou sem elas, estão ausentes desta «História de Portugal»: dir-se-ia que não têm «classe» para formar uma classe. Seriam portugueses de segunda? Em boa verdade não eram de segunda, mas de terceira ou de quarta: mas não se pode exterminá-los.

É assim que a Revolução de 1383 – que, segundo muitos historiadores, jamais teria existido sem o «povo miúdo» dos mesteirais, rendeiros e trabalhadores rurais –, nos é apresentada por Bernardo Vasconcelos e Sousa como uma simples «crise», pois, segundo diz, «é inegável que não se operou nenhuma transformação radical nas estruturas materiais da sociedade da época nem vemos uma ‘nova classe’ a ‘tomar o poder’». Preferimos, no entanto, a já antiga lição de António Sérgio: «Evidentemente, quem combateu nas cidades e nos campos – o soldado raso, por que assim digamos – foi o povo, levado pelos sentimentos que lhe eram próprios: chamamos burguesa à revolução porque foi a burguesia que a inspirou de facto, que lhe deu o rumo, que a dirigiu, que lucrou com ela.»

O mesmo co-autor «tropeça» em Alfarrobeira, arredando a conclusão de Magalhães Godinho em «A Economia dos Descobrimentos Henriquinos» acerca do significado da derrota do Infante D. Pedro, «chefe do partido da burguesia», perante as forças da grande nobreza: «o esforço guerreiro da conquista retoma a primazia, e se os descobrimentos prosseguem é graças à iniciativa privada». A Regência de D. Pedro dera continuidade à Revolução de 1383; a seguir, no reinado de D. Afonso V, vêm só «feitos militares»…

Chegado a 1640, Nuno Gonçalo Monteiro também não é feliz ao interpretar a Revolução. Mais interessado em revelar quantos dos conjurados pertenciam a «linhagens fidalgas» do que em contar os membros da nobreza que, em 1580 como em 1640, se venderam a Espanha, considera que, «nos seus primórdios, o 1 de Dezembro foi um típico golpe palaciano, perpetrado por um grupo de algumas dezenas de fidalgos». A formulação é simplista e induz em erro, pois, se «as alterações» (leia-se, «os motins populares») registadas em Évora e no Algarve em 1637 eram protestos da arraia-miúda contra o fardo fiscal, e se é verdade que poderiam ter ocorrido mesmo que o monarca fosse português, não é menos verdade que foram «o grande motor da Restauração». Mais ainda: o «típico golpe palaciano» de 1640 não se destinaria também a evitar que o poder «caísse na rua», que o povoléu participasse na definição do seu próprio destino, de alguma forma retomando ou reeditando a sua rude intervenção na Revolução de 1383?

Sobre a Revolução de 1820, Rui Ramos dá crédito ao embaixador espanhol em Lisboa, José Maria de Pando, que registou o facto de o «baixo povo» pouco ter participado, mesmo na capital. E conclui: «Basicamente, o novo regime de Lisboa significou a conquista da direcção do Estado por altos magistrados e funcionários da monarquia, com o apoio dos comandos militares.» Mas José Maria Xavier de Araújo, em «Revelações e Memórias para a História da Revolução de 24 de Agosto de 1820, e 15 de Setembro do mesmo ano», escreve: «Os quartéis [de Lisboa] apareceram no dia 17 de Novembro cercados por grupos de cidadãos armados, capitaneados por pessoas decentemente vestidas.» Comentou Fernando Piteira Santos, em «Geografia e Economia da Revolução de 1820»: «Este quadro do povo e da burguesia em armas não se nos depara em qualquer outro momento da Regeneração. É o povo em armas ‘capitaneado por pessoas decentemente vestidas’ e com o juiz do povo e o seu escrivão que faz frustrar o golpe do partido militar, que reconduz Fernandes Tomás, Ferreira de Moura, Frei Francisco de S. Luís e Braamcamp de Sobral aos seus postos governamentais, que impõe uma lei eleitoral e lhes dá força para expulsar do Governo, e de Lisboa, António da Silveira.» (…) «Em 1383 é a burguesia do Porto que garante a vitória da Revolução de Lisboa; em 1820 é a burguesia de Lisboa que garante a vitória da Revolução do Porto.»

Quanto ao 5 de Outubro de 1910 e ao 25 de Abril de 1974, alguns pasmarão com as opiniões de Rui Ramos. Sobre a República, denuncia «o mito de uma revolução popular» e proclama: «Mais do que o carácter electivo dos cargos da direcção política do Estado, o que definiu a ideia de república, em Portugal depois de 1910, foi a reserva desses cargos e dos empregos públicos para os republicanos.» Quanto ao 25 de Abril, também nunca vê o povo, mas apenas militares e partidos políticos. Vinda de alguém que se reclama da «escola dos Annales» e da «historiografia anglo-saxónica», esta cegueira é, no mínimo, bizarra. Bizarra e basto instrutiva.

Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, «História de Portugal», A Esfera dos Livros, 2009, 976 páginas