Espinosa («Tratado Político»)

Um democrata no século XVII

António Rego Chaves

Dizia Schopenhauer que Espinosa «tem o grande defeito de cientemente utilizar mal certas palavras para expressar conceitos que, no mundo inteiro, são expressos por outras palavras e, por outro lado, de os privar do sentido que têm em toda a parte». Exemplificava: «Assim, chama ‘Deus’ ao que em toda a parte se chama ‘ mundo’; ‘justiça’ ao que em toda a parte se chama ‘poder’; e ‘vontade’ ao que em toda a parte se chama ‘juízo’.» O filósofo de «Parerga e & Paralipomena» julgava saber por que motivo o autor da «Ética» usara o substantivo «Deus» na sua obra: «a fim de que a sua doutrina encontrasse menos oposição, objectivo no qual falhou».

«Quanto a sua ‘Ética’ teria sido mais clara, e por consequência melhor, se tivesse expressado francamente o que tinha no espírito, e tivesse chamado as coisas pelos seus nomes!» – comentava, ainda, Schopenhauer. Os tempos não eram, porém, para graças, na comunidade de Amesterdão, para o «israelita» Baruch de Espinosa, excomungado em 1656, aos 24 anos, por altas instâncias religiosas judaicas devido às «horrendas heresias que praticava e ensinava». Além disso, como salienta Yirmiyahu Yovel, «a ideia de milagres parecia-lhe contradizer tanto a razão como as leis da natureza e nos profetas encontrava mostras de grande poder imaginativo mas não de pensamento racional estruturado». Enfim, considerava a morte como «o fim absoluto de qualquer criatura viva, tanto do corpo como da alma». De mais, mesmo para a «civilizada» Holanda do século XVII.

Os deístas eram tolerados, pois não se atreviam a negar a existência de uma divindade transcendente, ao contrário de Espinosa, que identificava Deus com a Natureza, tornando-o imanente. Ou seja, «revelou-se um herege não só entre os fiéis mas igualmente entre os representantes da heresia aceite na altura, afastando-se assim de todas as correntes espirituais importantes do seu tempo», conclui, ainda, Yirmiyahu Yovel, para quem «a ruptura de Espinosa com o judaísmo e o cristianismo prenunciava a era moderna».

Não admira, pois, que só nos últimos decénios certas obras de «Bento» de Espinosa viessem a lume em português de Portugal, embora a «Ética», na «milagrosa» tradução de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e António Simões, tal como o «Tratado sobre a Reforma do Entendimento», na não menos «milagrosa» tradução de Borges Coelho, com os seus temerários prefácio e notas, tivessem sido publicados antes do 25 de Abril.

Diogo Pires Aurélio, depois das cuidadas tradução, introdução e notas ao «Tratado Teológico-Político» (1.ª edição em1988, 3.ª edição integralmente revista em 2003) e de «Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa» (2000), introduz e anota com igual mérito o «Tratado Político», que também nos oferece hoje no nosso idioma, trabalho a que foi atribuído, em 2009, o Prémio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa da Fundação para a Ciência e Tecnologia e da União Latina.

Sem a erudição, por vezes asfixiante, do «Tratado Teológico-Político», que visava «subtrair o homem à escravidão da superstição e restituí-lo à sua liberdade de pensamento», o «Tratado Político» não deixa de visar idêntico objectivo. Acentue-se que o filósofo, em ambos os textos, foge do «método utópico, que se limita a relevar as condições ideais de uma sociedade humana, sem se perguntar se elas são efectivamente realizáveis ou não», para adoptar o «método realista, que se propõe deduzir uma doutrina política do conhecimento da natureza humana, para que ela seja susceptível de se adequar o melhor possível à prática» (Sylvain Zac).

No «Tratado Político», «onde se demonstra como deve ser instituída uma sociedade em que tem lugar um estado monárquico, assim como aquela em que imperam os melhores, para não resvalarem para a tirania e para manterem invioladas a paz e a liberdade dos cidadãos», o autor, afirmando ter usado «a mesma liberdade de ânimo que é costume nas coisas matemáticas», não podia ser mais claro («a clareza é a boa-fé dos filósofos», lá dizia Vauvenargues): «Procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem detestar as acções humanas, mas entendê-las».

Como em Maquiavel, são os factos que imperam: «Não encarei os afectos humanos, como são o amor, o ódio, a ira, a inveja, a glória, a misericórdia e as restantes comoções do ânimo como vícios da natureza humana, mas como propriedades que lhe pertencem, tanto como o calor, o frio, a tempestade, o trovão e outros fenómenos do mesmo género pertencem à natureza do ar, os quais, embora sejam incómodos, são contudo necessários e têm causas certas, mediante as quais tentamos entender a sua natureza.»

Manifesta-se, no entanto – haja Deus! – uma centelha de optimismo no «Tratado Político», quando o filósofo escreve: «Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quantos mais estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.» Mas aonde nos levaria tão amplo estreitamento, seria para longe das prepotências dos regimes monárquicos e aristocráticos? Pois à democracia, não restam dúvidas. À democracia, tal como o filósofo a definira já em belas páginas do «Tratado Teológico-Político»: «A união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o supremo direito a tudo o que estiver em seu poder.» Por outras palavras: «Em democracia, ninguém transfere o seu direito natural para outrem ao ponto de este nunca mais ter de o consultar daí em diante: transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte, e, nessa medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no estado de natureza.» Nunca vimos tal democracia de todos e de cada um, mas, para usar dois termos de Espinosa, não temos «medo» de a ver, temos mesmo «esperança» de a ver. Dizendo de outra maneira: estamos cá para a ver…

Espinosa, «Tratado Político», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, 223 páginas