O «Sampaio Bruno» de Joel Serrão

António Rego Chaves

Precisamente meio século depois da sua primeira edição, este livro de Joel Serrão sobre Sampaio Bruno (1857-1915) – em boa verdade, ainda hoje o mais importante dos textos publicados sobre o filósofo portuense – parece ser vítima de ocultação sistemática por parte dos que se consagram à chamada «filosofia portuguesa». Decerto que o intelectual que nos deixou esse autêntico monumento que é o «Dicionário de História de Portugal» e tantos e tão brilhantes estudos sobre temas oitocentistas, a par de ensaios como «O Carácter Social de Revolução de 1383», não terá sido benquisto, devido às suas assumidas raízes sergianas e à ligação à «Seara Nova», por quantos quiseram transformar o pensamento filosófico dos nossos concidadãos em matéria susceptível de despertar arroubos nacionalistas ou, mesmo, chauvinistas. Basta folhear o «Dicionário de Filosofia Portuguesa» de Pinharanda Gomes, obra aliás meritória pelo esforço de investigação desenvolvido, para ver quem, da óptica «patriótica», são os grandes «atletas» antipositivistas das ideias lusitanas do último século: Leonardo Coimbra, José Marinho, Teixeira de Pascoaes, António Quadros, Álvaro Ribeiro.

Voltemos, pois, a este estudo de Joel Serrão, decerto tão silenciado quanto plagiado nos últimos cinquenta anos: publicado em 1958, quando o autor contava 39 anos, era professor do Liceu Passos Manuel – onde tivemos o privilégio de receber da sua boca as primeiras lições de Filosofia – e lhe estava vedado um merecido acesso à docência universitária, o ensaio terá provocado não poucos rangeres de dentes, sobretudo entre o ultra-irrequieto grupo do jornal «57», cujo surgimento assinalara o centenário do nascimento de Sampaio Bruno, ao mesmo tempo que reivindicava uma genealogia espiritual que arrancava da Bíblia e de Aristóteles, passando por Dante e pelos Conimbricenses, e desembocando em Hegel, Bruno e Leonardo Coimbra. Cunha Leão, António Quadros, Orlando Vitorino, Afonso Botelho, António Braz Teixeira, Fernando Sylvan e António Telmo eram alguns dos seus mais ostensivos tenores.

«Sampaio Bruno – O Homem e o Pensamento» é notável pela clareza da exposição, pela subtileza na abordagem da filosofia do autor de «Análise da Crença Cristã» (1874), «O Brasil Mental» (1898), «A Ideia de Deus» (1902) ou «A Questão Religiosa» (1907), bem como pela coragem intelectual e cívica de Joel Serrão. De facto, os tempos não estavam para graças – e havia facetas de Bruno que se encontravam nos antípodas das opções salazarentas. Desde muito novo ele assimilara Proudhon e Marx, cantara a Internacional, soltara pelas ruas do Porto sonoros vivas à Comuna. Mais: apenas com 17 anos, a sua «Análise da Crença Cristã» atacara de frente o cristianismo e os jesuítas, reivindicara um deísmo que roçava o ateísmo, incensara Voltaire, «o gigante de Ferney». Além disso, fora membro do directório do Partido Republicano, participara na revolta de 31 de Janeiro de 1891, tinha sido forçado ao exílio, assinara centenas de artigos defendendo a causa da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Não seria, pois, aos olhos do situacionismo, uma figura «recomendável» ao sossego das famílias. Escrevera nas «Notas do Exílio» (1893): «Eu não sou um homem de letras, eu não quis jamais ser outra coisa do que um homem de propaganda. Não sou um literato, sou um sectário; sou um jacobino, não sou um estético.» Porém, apenas quatro meses após a implantação da República, alheara-se do debate ideológico, «completa e absolutamente enojado da vida política portuguesa».

Anos antes, advertira: «O verdadeiro progresso consiste no reconhecimento dos nossos direitos recíprocos; na extirpação das injustiças históricas; na eliminação das opressões e das tiranias; na convergência, enfim, para uma crescente igualização da felicidade comum; tanto quanto possível, na aproximação constante da realidade concreta evolucionando para o limite abstracto da aspiração ideal.» Mas esse verdadeiro progresso não «pode dar-se desde que as almas só reconheçam os preceitos do respeito e da obediência. É preciso que lhes estimulem as ansiedades da dúvida, que lhes incutam coragem as confianças da crítica, que as propinem as audácias da análise.» Mais uma vez se via, pois, exilado, mas agora estava na «sua» querida república…

Era um heterodoxo, tanto em matéria de ideias políticas como de crenças religiosas. Considerara o jesuitismo responsável pelos vícios da mentalidade portuguesa, recusara-se a entrar na Maçonaria, incompatibilizara-se com a Monarquia e com a República. Diz Joel Serrão: «Não foi nem positivista nem antipositivista, nem materialista nem espiritualista, nem ateu nem teísta, nem optimista nem pessimista quanto à essência moral do homem». Para ele, «não há incompatibilidade entre o que chamamos razão e fé, discurso e intuição, silogismo e revelação. São processos que se implicam, se completam, e que tão-só na sua inter-relacionada tessitura ganham sentido psicológico, lógico e místico. O elemento primordial é a ‘revelação’, mas esta só se estrutura em raciocínio, que como tal é necessariamente apenas um degrau (de escada infindável) do qual emerge uma nova ‘revelação’, que condicionará uma nova estruturação lógica.» Usando, ainda, as palavras do autor deste ensaio: «Pôr nestes termos a questão de Deus não é tanto obra de teologia como de teurgia ou de teosofia.»

Uma nota para assinalar, segundo a lição de Joel Serrão, algumas fontes exotéricas e esotéricas de Sampaio Bruno. Entre as primeiras, «Os Mistérios do Povo», de Eugène Sue, «Os Miseráveis», de Victor Hugo e «A Liberdade de Consciência», de Jules Simon; depois, Amorim Viana e Guilherme Braga, com a «Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé» e «O Bispo»; a seguir, Voltaire, Diderot, Swedenborg; também Comte e Spencer; finalmente «o grandíssimo Kant» da «Crítica da Razão Pura», Nietzsche e Eduard von Hartmann. Quanto às fontes esotéricas: maçonaria, cabala, gnosticismo.

Para este homem que tudo quis ler e saber, a tarefa de produzir um pensamento original foi gigantesca: a cada um dos seus estudiosos caberá dizer se teve êxito nesse intento ou se não logrou superar um tão indesejado quanto decepcionante ecletismo.

Joel Serrão, «Sampaio Bruno, O Homem e o Pensamento», Inquérito, 1958, 239 páginas