Um livro para corrigir (Antony Beevor)

António Rego Chaves

Consideram Antony Beevor e Artemis Cooper, autores de «Paris Após a Libertação», que os três problemas principais abordados neste livro são «a Ocupação e a ‘épuration’ como parte de uma guerra franco-francesa; a admiração da intelligentsia pela desumanidade revolucionária (sic); e as relações da França com os Estados Unidos.» Sumário esclarecedor. Pena que não sejam arredados os inúmeros apêndices que se acumulam no texto, muito deles decerto interessantes para leitores de revistas «cor-de-rosa», mas despropositados numa obra que, pelas suas dimensões e apesar de prescindir de índice onomástico, bem poderia ser um importante instrumento de consulta sobre ideias e factos ocorridos entre 1944 e 1949 em Paris. Mas os autores perdem-se, por vezes, num desfile de bisbilhotices, futilidades e boatos nunca confirmados, debruçam-se sobre excessos etílicos, orientações sexuais e ementas de jantares ou dissertam acerca da moda feminina e de historietas de alcova, em detrimento dos «problemas principais» acima apontados. Acresce que o muito britânico e aristocrático toque de desdém pelos comunistas e intelectuais franceses que percorre a obra anula desde logo toda e qualquer perspectiva de análise rigorosa de acontecimentos capitais da época, como o colaboracionismo e a resistência, a «épuration» e os julgamentos de traidores, o apoio ao nazismo e ao estalinismo, a americanofilia e a americanofobia.

O prestigiado ensaísta estado-unidense Herbert Lottman – aliás mencionado na extensa bibliografia apenas como autor de «Albert Camus» e «La Rive Gauche, du Front Populaire à la Guerre Froide», mas curiosamente não de «Pétain» e «L’Épuration» – afirmara que «os franceses não têm de corar pela sua ‘épuration’» (depuração, purga) «como muitas vezes parece que têm tendência para fazer.» Conhecia bem o terreno que pisava. E decerto previra, no momento em que escrevia, o risco que corria de não agradar nem a gregos nem a troianos, comprometendo assim a venda de muitos e muitos milhares de exemplares da sua laboriosa investigação, que não pretendia impor como mais um cómodo «best-seller», mas «apenas» como a obra de referência que continua a ser. Leia-se a contracapa do livro de Antony Beevor e compare-se: «Aqui todos os mundos são explorados, de prédios, bordéis e fábricas, jazz de garagem e estúdios, a salões, tribunais e aos vetustos castelos da vieille France.» Notável que se queira apelar para pretensos secretos desejos do leitor, transformando-o em invisível e deliciado «voyeur» de lugares proibidos que presumivelmente gostaria de ter frequentado. Sentenciaria talvez um modernaço e «pragmático» editor: «É o comércio, estúpido!»

Ressalvado o indisfarçável snobismo (apenas de Artemis Cooper, descendente do primeiro embaixador britânico em Paris no pós-guerra, Duff Cooper, e herdeira dos seus documentos íntimos?), retirados os anacronismos de quem não consegue avaliar o passado tendo em conta o que na realidade foi vivido por gerações que nos precederam, arredado o «lixo» consagrado à moda, ao turismo ou às corridas de cavalos, em suma, separado o trigo do joio, o livro merece ser lido.

Torna-se evidente que os autores nutrem um ódio de estimação pela Revolução Francesa, a Comuna de 1871 ou a Frente Popular de 1936 e que esse sentimento os impede de ser lúcidos, mas o livro merece ser lido. Incomoda-nos ver o grande Céline classificado como um «escritor brilhantemente louco», mas o livro merece ser lido. Aborrece-nos que a grafia do colaboracionista e nazi Alphonse de Chateaubriant seja confundida com a do «velho» Chateaubriand das «Memórias de Além-Túmulo», mas o livro merece ser lido. Indigna-nos que se tente fazer passar a mensagem de acordo com a qual os britânicos não sofreram «os efeitos divisórios da ocupação» e «tiveram de lidar com poucos traidores», mas o livro merece ser lido. Não nos convence a tese «branqueadora» segundo a qual, para um número significativo de mulheres francesas, a «colaboração horizontal» com os alemães era «a única maneira de impedir que os filhos morressem de fome», mas o livro merece ser lido. Desgosta-nos uma frase dizendo que Saint-John Perse «escreveu poesia de meditação exótica», mas o livro merece ser lido. Arregalamos os olhos ao anotar que «o existencialismo é agora recordado mais como um movimento literário do que como uma filosofia duradoura» (valham-nos «Ser e Tempo» e «O Ser e o Nada»!), mas o livro merece ser lido. Não nos apraz verificar que a classificação que ocorre aos autores para o genial poeta Antonin Artaud é simplesmente a de «artista» (quando dirigido por Dreyer e Abel Gance?), mas o livro merece ser lido. Ficamos perplexos ao sermos informados de que Jean Paulhan era «o gramático», mas o livro merece ser lido. «Aprendemos» que Sartre escreveu as peças de teatro «Homens sem Sombras» e «A Respeitável Prostituta», em vez de «Mortos sem Sepultura» e «A Puta Respeitosa», mas o livro merece ser lido. Insinua-se que Picasso se juntou ao PCF «para salvaguardar uma fortuna avaliada em 600 milhões de francos», mas o livro merece ser lido. Acumulam-se boatos sobre as relações entre Thorez e De Lattre, entre este e o PCF, entre Camus e Truman Capote, mas o livro merece ser lido. Dá-se a entender que o KGB desempenhou um papel de relevo na retirada da França da estrutura militar da NATO decidida por De Gaulle (cuja célebre frase recusando mandar prender Sartre e comparando-o a Voltaire surge datada de 1947, e não de 1960, no contexto da Guerra da Argélia e do Manifesto dos 121), mas o livro merece ser lido. Declara-se que «a verdadeira vergonha dos anos de Vichy foi o tratamento dado aos judeus pelo regime» – e não um amplo colaboracionismo, decerto bem mais abrangente pelo número dos seus responsáveis e das suas vítimas –, mas o livro merece ser lido. Equipara-se o aperto de mão de Pétain a Hitler ao de Mitterrand a Milosevic, mas o livro merece ser lido.

Lido, «depurado», corrigido e aumentado pelas magistrais obras que Herbert Lottman consagrou à França do século XX.

Antony Beevor e Artemis Cooper, «Paris Após a Libertação: 1944-1949», Bertrand Editora, 2006, 517 páginas