Tolstoi, cristão sem Igreja

António Rego Chaves

Os anos 90 do século XIX correram difíceis para Tolstoi (1828-1910) em matéria de relações com a Igreja Ortodoxa da Rússia. A década iniciada em 1891culminaria, em Abril de 1900, com a promoção, pelo presidente do Santo Sínodo, da excomunhão do venerável escritor, após a publicação do seu romance «Ressurreição». Menos de um ano passado, a 22 de Fevereiro de 1901, os membros do Santo Sínodo fariam afixar às portas de todas as igrejas do país um documento de cariz inquisitorial que o acusava de «crimes» como a negação do Deus vivo e pessoal, a refutação da divindade de Jesus, da Imaculada Conceição e da virgindade de Maria, ou a não-admissão da vida depois da morte – e que o convidava ao arrependimento.

Tolstoi ver-se-ia publicamente apoiado por toda a Santa Rússia após o anúncio da sua excomunhão, a 24 de Fevereiro de 1901. Longe de se retractar, contra-atacava: «Creio que a vontade de Deus está mais clara e inteligivelmente expressa nos ensinamentos de Jesus homem, e sustento que considerá-lo um Deus e rezar-lhe é a maior das blasfémias.»

Que se passara? Passara-se que o autor de «Guerra e Paz» não era apenas um ficcionista – era também o ensaísta que escrevera textos como os que se reúnem neste volume com os títulos «Confissão», «Qual é a Minha Fé?» e «Pensamentos sobre Deus». E que esses textos, longe de irem ao encontro dos ensinamentos da Igreja Ortodoxa, iam de encontro ao seu magistério, pois punham em causa, não apenas a religião tradicional instituída, mas os fundamentos políticos da sociedade em que vivia. Depois dos 50 anos, Tolstoi não se interrogara apenas a si próprio – interpelara e contestara o trono e o altar acerca da sinceridade dos seus cristianismos. Havia aqui, por um lado, um problema teológico, o da morte, da doença e do sofrimento, ou seja, o do Mal, a que o pensador se recusava a responder com uma pretensa ignorância do absurdo da vida, com o hedonismo, com o suicídio ou com a resignação; e, por outro lado, uma questão que era frontalmente colocada aos poderes temporal e espiritual. Nem um nem outro lhe dariam respostas capazes de pôr cobro às suas legítimas interrogações políticas e metafísicas.

Os valores que Tolstoi encontrava na mensagem de Jesus – o amor, a humildade, o sacrifício, o dom de si, a não-violência –, que na sua época via corporizados no Mahatma Gandhi, alguém que muito admirava e com quem se correspondeu, estavam ausentes da prática política dos czares e da hierarquia religiosa da Rússia. Escreverá: «Se me afastei da Igreja, não foi só por causa da estranheza dos seus dogmas, foi também porque ela reconhece e aprova perseguições, execuções, guerras e porque as diferentes confissões [cristãs] se negam mutuamente.» Pouco ou nada lhe importavam os dogmas, os sacramentos, os jejuns, as preces, as palavras eclesiásticas; importavam-lhe, sim, os actos da Igreja – e, a esses, julgava-os deploráveis.

Lê, relê e traduz os Evangelhos, medita sobre o Sermão da Montanha: cultiva a ideia da não-violência, com todas as consequências que ela acarreta – consequências essas que poderiam revolucionar a estrutura da sociedade russa, «extinguindo» a propriedade, os tribunais, o exército, mesmo o próprio Estado. Ataca o pseudocristianismo da Igreja, proclama a necessidade de viver de acordo com a razão, considera imperativa a procura, não do bem individual, mas do bem comum. Quer ver o Reino de Deus, não no Céu, mas ali onde nasceu, naquela terra russa durante séculos regada com o sangue, o suor e as lágrimas dos mujiques. Declara: «Qualquer tentativa de pensar uma vida individual que não seja baseada na renúncia a si mesmo com a finalidade de servir os homens, a Humanidade, o Filho do homem, conduz-nos perante um fantasma que se volatiliza ao primeiro contacto com a razão.»

Salienta George Steiner: «Tolstoi não queria tratos com a ‘igreja morta’ que aceita os crimes, os desatinos e as desumanidades da vida terreal à espera que se faça justiça mais tarde. A teodiceia da compensação, a crença em que os torturados e os pobres se sentarão à direita do Pai noutro reino, parecia-lhe uma lenda fraudulenta e cruel, forjada para conservar a ordem social existente. A justiça deve ser feita aqui e agora.» (…) «Com uma sombria intuição, sentia que Deus não daria outra vida. A única que temos deve tornar-se a mais sã e perfeita que for possível.» (…) «Se não há ‘outra vida’, se o Reino de Deus é simplesmente uma fantasia nascida do sofrimento humano, então devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para purgar o mundo dos seus defeitos e construir [a nova] Jerusalém com ladrilhos terreais. Para realizar isso teremos possivelmente de derrubar a sociedade existente.»

Recorda ainda Steiner que o sonho de transformar de forma radical a sociedade «foi o sonho dos apocalípticos medievais, dos anabaptistas, dos adamitas ou dos ‘ranters’, os mais extremistas dos teocratas puritanos», mas que Lutero contestou nos seguintes termos a tentativa de Thomas Müntzer, em 1525, de governar Mülhausen como a cidade do Apocalipse: «Propõem-se fazer todos os homens iguais, fazer do reino espiritual de Cristo um reino deste mundo, um reino exterior… e isso é impossível.»

Tolstoi conhecia e referiu-se com frequência ao pensamento de Moisés, Confúcio, Buda, Sócrates, Pascal, Espinosa, Fichte, Feuerbach…e Marx. Notável é que, em 3 de Agosto de 1898, tenha escrito no seu diário estas palavras que viriam a revelar-se proféticas: «Ainda que sucedesse o que Marx predisse, a única coisa que sucederia é que o despotismo se deslocaria. De um lado dominaram os capitalistas, do outro dominarão os mandadores dos operários.» Segundo releva George Steiner, Lenine descreveu-o como um «espelho da revolução russa» e, em Novembro de 1905, «parece que o escritor adoptou algumas das teorias próprias do marxismo sobre a futura insurreição e a ‘extinção’ final do Estado» …

Léon Tolstoï, «Confession», Pygmalion, 1998, 247 páginas