Ser aluno: uma vida de cão (Raoul Vaneigem)

António Rego Chaves

O belga Raoul Vaneigem (1934) foi um dos intelectuais mais importantes da radical «Internacional Situacionista» e do Maio de 68, tornando-se conhecido sobretudo pelo seu «Traité de savoir vivre à l’usage des jeunes générations». Aí se critica sem contemplações a vida quotidiana nas sociedades consumistas, dominadas pela avidez do «ter», em detrimento do «ser». Como consequências, apontava a humilhação, o isolamento e o sofrimento a que se encontram submetidos os homens contemporâneos. A sua «revolução» contra o «totalitarismo do capital» visava, pois, não só os âmbitos do económico e do político, mas sobretudo o da existência quotidiana. Lutando por um mundo de indivíduos verdadeiramente livres, ou seja, de «senhores sem escravos», invocava, não apenas Marx, mas Rimbaud, Lautréamont ou Lewis Carroll em defesa da sua ânsia de transfigurar a vida. Como escreveu Alain Quesnel, «a sua obra propõe menos um sistema filosófico novo do que uma constante e apaixonada reivindicação dos direitos da subjectividade poética e do hedonismo sob todas as suas formas».

Neste contexto se insere o «Avertissement aux écoliers et lycéens» (1995), vigoroso manifesto em prol da autonomia, do saber e da criatividade nas escolas. Basta ter presente, como o autor, que em Dezembro de 1991 a Comissão Europeia, num memorando sobre o ensino superior, recomendava às universidades que se comportassem como empresas submetidas às regras concorrenciais do mercado, ou que, no mesmo documento, os termos «estudantes» e «estudos» eram substituídos por expressões como «capital humano» e «mercado de trabalho» para entender a frontal rejeição de Raoul Vaneigem, homem de cultura, a tais orientações. Aliás, a mesma Comissão Europeia reincidiria em Setembro de 1993 na sua perspectiva economicista – por outras palavras, anti-humanista – ao precisar que é necessário, desde o ensino pré-primário, formar «recursos humanos para as necessidades exclusivas da indústria», favorecendo assim «uma maior adaptabilidade dos comportamentos, de forma a responder à procura do mercado da mão-de-obra».

O ensaísta é claro: «A escola foi, com a família, a fábrica, a caserna e, acessoriamente, o hospital e a prisão, a passagem inelutável onde a sociedade mercantil inflectia em seu proveito o destino dos seres ditos humanos.» A sua preocupação dominante consistia, pois, em «melhorar as técnicas de amestramento, a fim de que o animal fosse rendível». A verdade é que, com aterradora frequência, a criança, o adolescente e, mesmo, o jovem adulto, foram de alguma forma «aprisionados, constrangidos, culpabilizados, julgados, castigados, humilhados, etiquetados, manipulados, violados» na escola, no liceu ou na universidade que frequentaram. Devido ao incremento de um ensino voltado para «a produção de uma sobrevivência enfeudada aos imperativos de uma economia lucrativa», o estudante encontrou-se submetido ao despotismo, a trabalhos forçados, a uma disciplina próxima da militar. Por outro lado, o poder dos preconceitos, a força da inércia e a habitual resignação das maiorias ditas silenciosas conduziriam a que, «na miserável esperança de uma promoção social e de uma carreira garantida até à reforma», o número dos insubmissos não fosse nunca suficiente para fazer sequer abalar este sistema concentracionário.

Em finais do século XX – aliás como hoje – não se poderia afirmar que a estrutura do ensino tinha sido modificada. Os interesses económicos e financeiros e a sacrossanta mercadoria prevaleciam sobre o desenvolvimento harmónico dos jovens, que eram ensinados a sobreviver – mas não a viver de acordo com os seus desejos, as suas características específicas, os seus sonhos. Por outro lado, a competição entre os estudantes impunha-se cada vez mais desde tenra idade, levando-os a comportamentos em que por vezes «valia tudo» para que os «rivais» fossem derrotados na corrida para cair nas boas graças dos professores e ter boas notas. Ora, diz Raoul Vaneigem, «uma sociedade que não tem outra resposta à miséria senão o clientelismo, a caridade e os expedientes é uma sociedade mafiosa. Colocar a escola sob o signo da competitividade é incitar à corrupção, que é a moral das negociatas.» (…) «Se a escola não ensina a bater-se pela vontade de viver, mas pela vontade de poder, condenará gerações à resignação, à servidão e à revolta suicidária. Transformará em suspiro de morte e de barbárie o que cada pessoa possui em si de mais vivo e de mais humano.»

Completam o texto de abertura mais quatro pequenos ensaios, cujos títulos dizem quase tudo: «En finir avec l’éducation carcérale et la castration du désir»; «Démilitariser l’enseignement»; «Faire de l’école un centre de création du vivant, non l’antichambre d’une société parasitaire et marchande»; «Apprendre l’autonomie, non la dépendance». Relevemos as seguintes considerações do autor, suficientemente expressivas para dispensarem qualquer comentário: «Apercebemo-nos, com o recuo do tempo, de que os e as estudantes do liceu foram tratados segundo os processos do sábio estaliniano Pavlov que, com os cães do seu laboratório, recompensava cada boa resposta com um bocado de açúcar e punia a má acção com um choque eléctrico. Não seria necessário que o desprezo fosse a norma de uma época para que os pedagogos preconizassem um método educativo que nenhum ser humano digno desse nome infligiria hoje a um cão? E será assim tão indiscutível que a escola não continua a ser, com a cobardia de um assentimento geral, um lugar de amestramento e de condicionamento ao qual a cultura serve de pretexto e a economia de realidade?»

Tememos que estas ideias não cheguem ao conhecimento de muitos professores e alunos portugueses, embora não devam ser ignoradas pelos que estão incumbidos de decidir que ensino vão ter os nossos filhos e netos. Mas, no caso destes altíssimos responsáveis, parece óbvio que ninguém se preocupa com o pensamento de Raoul Vaneigem. É pena, pois os nossos jovens bem mereciam melhor sorte do que a morte dos frágeis sonhos que ainda os habitam…

Raoul Vaneigem, «Avertissemente aux écoliers et lycéens», Mille et une nuits, 1995, 79 páginas