Elias Canetti («Auto de Fé»)

Uma vida de «sábio»

António Rego Chaves

Elias Canetti foi grande admirador de Karl Kraus e, sob a influência da sua obra, escreveu «Auto de Fé». Admirava a capacidade que o autor de «Os Últimos Dias da Humanidade» possuía de estar atento a tudo o que se passava à sua volta e era digno de registo, fosse em Viena ou em Berlim, e atraía-o a coragem que manifestava ao intervir na vida pública, ainda que solitário, para denunciar os males das sociedades austríaca e alemã. Este romance é fiel a tal lição, embora seguindo um rumo alheio ao jornalismo e deixando-se decifrar com mais dificuldade do que os textos de Karl Kraus.

A reconhecida influência de Franz Kafka em «Auto de Fé» – pelo menos d’ «A Metamorfose» – não terá sido menos significativa. Confessaria Canetti em «A Consciência das Palavras»: «Ali encontrei, num grau de perfeição supremo, a contrapartida daquela ausência de compromisso total com a literatura que tanto odiava: ali se tinha conseguido qualquer coisa que eu desejava encontrar apenas para mim. Inclinei-me perante um tal modelo, o mais puro de todos, sabendo que era inatingível; no entanto, deu-me forças.» Porém, como notou Vargas Llosa, a «frieza cerebral» do Nobel de 1981 nunca aflora, sequer, a profunda «ternura soterrada» de Franz Kafka.

É habitual considerar-se «Auto de Fé» como um reflexo da sociedade em que surgiu o nazismo, num espaço geográfico de negação da solidariedade, de contínua violência nas relações interpessoais, de «salve-se quem puder». Ninguém o negará, mas seria pouco rigoroso cingir as questões levantadas neste livro pelo autor de «Massa e Poder» à Viena que se seguiu à queda do Império Austro-Húngaro ou à Berlim dos tempos da ascensão do III Reich.

«Auto de Fé» lê-se não poucas vezes com dificuldade. O próprio Canetti reconheceria ter gerado um texto «desapiedado» para consigo e para com o leitor, dizendo-se «imunizado contra tudo quanto pudesse ser agradável ou complacente». Reagia à moda da época: «O que mais se apreciava era de uma sentimentalidade operística e, por baixo, ainda ficavam os lamentáveis folhetinistas e os palradores de ninharias. Não posso dizer que algum deles significasse alguma coisa para mim: a sua prosa causava-me nojo.»

O problema, hoje, poderá residir em que nem todos os que se debruçam sobre «Auto de Fé» partirão para a obra tão «imunizados» contra o «agradável» quanto o seu autor: daí que muitos possam ceder à tentação de não passar das suas primeiras dezenas de páginas. Seria lamentável que tal sucedesse, não só pela meritória tradução de Luís de Almeida Campos, como pelo risco de comprometer o entendimento do alcance de «Auto de Fé». Revelou Canetti: «Um dia ocorreu-me que o mundo já não podia ser recreado como nos romances de antes, ou seja, da perspectiva de um escritor; o mundo estava desintegrado e só no caso de se ter a coragem de mostrá-lo na sua desintegração era possível oferecer dele alguma imagem verosímil. No entanto, isso não significava que fosse preciso escrever um livro caótico, no qual nada houvesse de inteligível; pelo contrário, era necessário inventar, com uma consequência extrema, indivíduos também extremos – como os que, em definitivo, integravam o mundo.»

A «desintegração» social de que fala o nosso autor patenteia-se a cada episódio, a cada desenvolvimento da acção, talvez sobretudo a cada diálogo de surdos, ou seja, a cada par de monólogos: as personagens falam de ou para si próprias, inaptas a escutar-se umas às outras, incapazes de sair de si, de amizade ou de amor. Seria cómodo restringir os comportamentos assim caracterizados a um ou dois países, a Áustria e a Alemanha, durante as décadas que se seguiram à I Guerra Mundial; mas Peter Kien, o «homem-livro» criado por Canetti, cujo maior terror é ficar cego, porque então não poderia ler e escrever, e que desejaria ser surdo, para não ter de ouvir os outros humanos, ainda que represente mais o erudito «rato de biblioteca» do que o intelectual europeu, é também uma personagem dos nossos dias: distraidamente afastado dos problemas dos seus coetâneos, recusa vê-los, pensá-los, vivê-los, fraterno, como parte ínfima da mesma comunidade.

Certo que essa (esta) comunidade de que o erudito «rato de biblioteca» se afasta pouco tem de atractivo: nela imperam a mesquinhez, a brutalidade física e psíquica, asfixiantes burocracias, atmosferas de pesadelo, o grotesco, o sórdido, o abjecto. E campeia, também, o desrespeito pelo saber – trata-se de «um mundo sem cabeça» que despreza as ideias e que, portanto, despreza também os livros, com excepção dos manuais práticos, só integrando obras escritas na medida em que elas não contrariam os objectivos da cartilha dominante ou se transformam em fontes de riqueza. Pior ainda: nesse (neste) «mundo sem cabeça», os poderes constituídos maltratam, amputam ou queimam livros e, com as fogueiras que ateiam, pertençam elas a igrejas, nazis ou editoras, aniquilam ou julgam aniquilar o pensamento que ameaça a sua hegemonia ou os seus lucros. Peter Kien dá um nome aos que destroem livros, a sua paixão: chama-lhes «os porcos».

Encerrado em casa com os seus vinte e cinco mil livros, o misantropo descrito por Canetti não está mais fechado em si do que outras caricaturais personagens de «Auto de Fé»: não é mais egoísta do que elas e, tal como elas, move-se sem sombra de indignação numa Viena opressiva, anti-judaica e misógina. Não pode usar, porém, a «desculpa» aplicável à massa dos que considera «gentalha iletrada» e que desfila pela obra: ele não é nem ignorante, nem boçal, nem mentecapto, mas um sinólogo de renome internacional, um «sábio». Um «sábio» que não sabe ter deveres para com os outros, um «sábio» sem absolvição possível perante os seus contemporâneos e perante a História. Um «sábio» que acabará devorado pelo fogo, juntamente com os seus vinte e cinco mil queridos livros.

Elias Canetti, «Auto de Fé», Livros do Brasil, 1982, 447 páginas