Wittgenstein: a lição incómoda

António Rego Chaves

O britânico James Frazer (1854-1941) fez publicar, entre 1911 e 1915, «O Velo de Ouro», certamente a mais célebre obra da literatura etnológica mundial. Verdadeira «enciclopédia dos factos religiosos», segundo Marcel Mauss, ordena uma imensa massa de informação recolhida por etnólogos, historiadores das religiões e folcloristas. As teses nela expostas seriam apaixonadamente discutidas por especialistas como Malinovski, Radcliffe-Brown ou Lévi-Strauss, unânimes em reconhecer a sua grande importância.

Como tem sido notado, a investigação de James Frazer constitui, de certa maneira, no plano do pensamento, a contrapartida de «A Origem das Espécies» e de «A Origem do Homem» de Charles Darwin. Daí que tenha obtido uma repercussão mundial sem paralelo no domínio da etnologia e que Ludwig Wittgenstein (1889-1951) não se dispensasse de a conhecer, embora não tenha lido a sua edição integral inglesa em treze volumes. Diz-nos o seu mais importante biógrafo, Ray Monk, que, para o filósofo, «todas as religiões eram maravilhosas, mesmo as das tribos mais primitivas». E o próprio Wittgenstein afirmava sem ambiguidades: «As pessoas exprimem os seus sentimentos religiosos de formas inacreditavelmente diferentes.»

Continuando a seguir os esclarecimentos de Ray Monk: «A magia era ‘profunda’ para Wittgenstein precisamente porque via nela uma expressão primitiva do sentimento religioso. Havia muito tempo que queria ler ‘O Velo de Ouro’, a obra monumental do grande antropólogo James Frazer sobre o ritual e a magia primitivos.» (…) «Não se poderia ter encontrado nada mais exasperante para ele do que a análise dos rituais mágicos como formas primitivas de ciência. Para Frazer, o selvagem que espetava um alfinete na efígie do seu inimigo fazia isso porque tinha formado uma hipótese científica falsa, a saber, que isso feriria o seu adversário. Para Wittgenstein, isso equivaleria a ‘explicar’ algo de profundo reduzindo-o a algo de incomparavelmente mais superficial. ‘Que estreiteza!’, exclamava. ‘Como é difícil para ele compreender um modo de vida diferente do modo de vida inglês da sua época!’» Com efeito, o autor do «Tratado Lógico-Filosófico» mostrou-se implacável em relação ao «racionalismo» vitoriano e aos preconceitos anglocêntricos que detectava em toda a obra do etnólogo. Comentará: «Frazer não pode imaginar um sacerdote que não seja no fundo um cura inglês contemporâneo, com toda a sua estupidez e toda a sua insipidez… Frazer é bem mais selvagem do que a maior parte dos chamados selvagens, porque eles são mais capazes de compreender os assuntos espirituais do que um inglês do século XX. As suas explicações das práticas religiosas são muito mais grosseiras do que o sentido dessas mesmas práticas religiosas.» Difícil ir mais longe na contundência…

Acompanhemos passo a passo a sucessão dos raciocínios de Wittgenstein nestas suas «Notas sobre o Velo de Ouro»: «A maneira como Frazer apresenta as concepções mágicas e religiosas dos homens não é satisfatória: ele fá-las surgir como erros. Agostinho estava portanto no erro, quando invocava Deus em todas as páginas das ‘Confissões’? Podemos dizer que, se Agostinho não errava, errava então o santo budista – ou qualquer outro cuja religião exprimisse concepções totalmente diferentes. Mas nenhum deles errava, senão na medida em que estabelecesse uma teoria.»

«Mesmo a ideia de querer explicar um uso – o assassínio do rei-sacerdote, por exemplo – parece-me errada. Tudo o que Frazer faz é torná-la plausível para homens que pensam como ele. Na verdade, é estranho que todos estes usos acabem por ser apresentados, por assim dizer, como estupidezes. É no entanto inverosímil que os homens façam tudo isto por mera estupidez.»

Salientando que um símbolo religioso não tem como fundamento uma opinião e que só pode haver erro quando há opinião, sustenta Wittgenstein: «Os actos religiosos ou a vida religiosa do rei-sacerdote pertencem à mesma espécie a que pertence hoje qualquer autêntica acção religiosa, como por exemplo a confissão dos pecados. Também esta pode ser ‘explicada’ sem ser explicada.» (…) «É absurdo prosseguir dizendo que [as acções rituais] provêm de concepções erróneas da física das coisas (é o que Frazer faz ao afirmar que a magia é essencialmente, consoante os casos, uma física falsa, ou uma medicina falsa, ou uma técnica falsa, etc.), apesar de uma opinião – uma crença – poder ser ela própria ritual ou fazer parte de um rito.» Aliás, já denunciara no «Tratado» algo que ainda hoje «arrepiará» muitos homens de ciência: «Não podemos inferir os acontecimentos futuros dos acontecimentos presentes. A crença no nexo causal é a ‘superstição’.»

Vejamos, à guisa de conclusão, aonde nos pode conduzir aquele que chegou a ser tido por «pai do positivismo lógico» e que tão celebrado foi pelo «Círculo de Viena», no qual pontificaram um Rudolf Carnap, um Otto Neurath ou um Hans Hahn (curioso que tal «neopositivista» tenha provocado, nos últimos anos, o surgimento de obras tão inesperadas para o universo universitário lusitano como «Ética e Crença Religiosa em Wittgenstein», de Cyril Barrett (1991), ou «Fideísmo de Wittgenstein?», de Kai Nielsen e D. Z. Phillips (2005), qualquer delas ignorada em português de Portugal, aliás como aquela de que nos estamos a ocupar): «Pode soar como simples de mais, mas pode dizer-se que a diferença entre magia e ciência consiste no seguinte, que existe um progresso na ciência, mas não na magia. A magia não possui uma direcção de desenvolvimento que lhe seja intrínseca.» Seria quase impossível dizer mais a tantos leitores. Uma outra fórmula: «Encontramos, na filosofia actual, todas as teorias infantis, infantis, mas sem aquele aspecto cativante que é próprio daquilo que é infantil.» Repetimos: seria quase impossível dizer mais a tantos leitores. Esperemos que os académicos portugueses venham finalmente a tomar a sério, em dia não distante, estas incómodas palavras de Wittgenstein – mas ele há cada utopia, que só um louco ousaria desejar tanto e tão pouco!

Ludwig Wittgenstein, «Note sul ‘Ramo d’oro’ di Frazer», Adelphi, 1975, 92 páginas