Crónica do leitor avarento (António Sérgio)

António Rego Chaves

Agostinho da Silva (1906-1994) e Magalhães-Vilhena (1916-1993) entrevistados acerca de António Sérgio (1883-1969)? Nem vale a pena perder tempo a folhear o livro na livraria – é vê-lo, comprá-lo e trazê-lo rápido para casa, na expectativa de esclarecermos um pouco do muito que não é indiscutível acerca de um dos mais importantes ensaístas portugueses do século XX. Lido com toda a atenção o esquelético texto, poderemos perguntar-nos: será que valeu a pena o gasto, será que ficámos a saber mais sobre António Sérgio, será que não nos venderam gato por lebre?

A verdade é que Agostinho da Silva manifesta aqui, apenas cinco anos antes de morrer, uma aparentemente insuperável dificuldade em falar do Outro enquanto Outro – e quase só se recorda a si, erigindo-se em tema privilegiado do diálogo; não menos verdade é que Magalhães-Vilhena nos surge, em 1989, como uma sombra quase irreconhecível do que foi no vigoroso «catecismo» marxista-leninista que é o seu ensaio «António Sérgio, o Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa».

Não nos bastaria conhecer há muito, no que se refere à opinião de Agostinho da Silva, esta esclarecedora síntese: «Creio que nenhum dos vultos da história da cultura portuguesa poderia ombrear com Herculano tanto quanto Sérgio. Ligam-nos as exigências do documento, a prioridade do pensar lógico (se é que há outro), a vocação pedagógica, a integridade do comportamento, a incansável intervenção cívica, a dedicação a um projecto de Portugal, a insistência numa reflexão de conjunto, e, na expressão, a variedade de estilo, ainda mais vincada no de Vale de Lobos. Excede-o Sérgio na concepção filosófica, que vai além do kantismo…»? Quanto ao resto, confirma Agostinho da Silva que António Sérgio polemizou de mais (aliás polemizou com quase toda a gente com quem foi chamado a polemizar, desde Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes a Carlos Malheiro Dias, passando por Manuel Múrias ou António Sardinha, Cabral de Moncada ou João Gaspar Simões, Leonardo Coimbra ou Abel Salazar, Bento de Jesus Caraça ou António José Saraiva – mas polemizou talvez acima de tudo consigo próprio e com as suas «certezas», como eminente cultor da dúvida metódica que foi). O resto pouco mais revela do que a estéril divagação de um homem esmagado pelo peso do seu longo passado e, até, por insistentes lapsos de memória.

No que se refere a Magalhães-Vilhena, o caso é muito diferente: quase se limita a acrescentar ao que já era público e notório que «as críticas de Sérgio ao materialismo histórico, à teoria do reflexo e à dialéctica materialista, tal como ele entende estas teorias, com as limitações bibliográficas que existiam no Portugal obscurantista da época, podem considerar-se justificáveis.» Acrescenta o eminente historiador da filosofia socrática: «O que eu pretendi (…) demonstrar é que essas teorias, de facto, não são o que delas Sérgio pensava. Exigem uma interpretação mais fundamentada e rigorosa e o recurso a textos essenciais que Sérgio não conhecia.»

Pergunta o entrevistador: «Na sua opinião, que ficará de Sérgio para as gerações futuras? A resposta de Magalhães-Vilhena talvez valha os 9,45 euros que gastámos. Transcrevemo-la na íntegra:

«Uma lição de racionalismo, considerando que o racionalismo é o oposto de irracionalismo, e o exemplo do seu combate contra a mentalidade teofilesca [relativa ao positivismo comtiano de Teófilo Braga,] e leonardesca [referência ao catolicismo de Leonardo Coimbra], de cultores de uma falsa cultura. Não possivelmente as suas ideias, mas a sua atitude crítica. Como Marx, ele poderia ter dito: ‘De omnibus dubitandum’. Duvidar de tudo. Ficará ainda, é claro, a sua prosa, límpida e de tão expressiva musicalidade. Sérgio foi um franco-atirador, um pedagogista social, que acreditou sobretudo na capacidade das elites. A sua obra representa uma fortíssima reacção à mentalidade da ‘geração de 90’, e em parte representa também a continuidade da ‘geração de 70’, a que ele está ligado por inúmeras afinidades. O sergismo implica também uma reacção saudável contra o ‘espectrismo’, ou seja, a fixação de um passado morto.»

Reacção à mentalidade da «geração de 90», continuidade da «geração de 70». Detenhamo-nos aqui. Que queria Magalhães-Vilhena significar com isto? Decerto que António Sérgio era sobretudo um homólogo dos proudhonistas Antero de Quental e Oliveira Martins –, além de decidido partidário da «revolução feita de cima». Mas será bom não esquecer que, segundo António Salgado Júnior, a obra do autor dos «Ensaios» «caracteriza-se pela propaganda duma pedagogia de ‘self-government’, duma educação cívica de consciência democrática, duma solução económica de base cooperativista, duma cultura de amplidão universalista. Dizendo-se sobretudo interessado em chamar a atenção para os problemas e em apontar a importância da sua discussão esclarecida, é frequente vê-lo afirmar a sua posição de pedagogo mais que outra qualquer – o que não deixa de ver-se verdadeiro, quando se nota que grande parte da geração que assistiu ao início da sua incansável actividade intelectual, por diferente que hoje seja a posição que toma em relação às suas doutrinas, lhe confessa dívidas mais ou menos importantes.»

Agostinho da Silva, embora começasse por considerar, preto no branco, que António Sérgio não teve importância para a cultura contemporânea, lá acaba por reconhecer o evidente: «Teve influência neste sentido, empurrou muita gente para as suas primeiras leituras e para a sua primeira capacidade de se pôr a raciocinar, afastando-os de muita coisa que se decorava sem que passasse pelo raciocínio. Ele pode ter despertado a gente a perguntar porquê? E perguntar porquê é a coisa que faz realmente avançar a cultura.» (…) «Eu li muita coisa ou interessei-me por muita coisa porque o Sérgio me empurrou para isso. Fui muito mais para o Sérgio para ver as coisas com clareza do que para toda aquela retórica, aquela oratória do Leonardo Coimbra.»

Aleluia! Afinal, pelo menos para alguns, talvez tenha valido a pena comprar o livro…

A. Campos Matos, «Agostinho da Silva e Vasco de Magalhães-Vilhena entrevistados sobre António Sérgio», Livros Horizonte, 2007, 63 páginas