Como o tempo passou (Eduardo Prado Coelho)

António Rego Chaves

Que fica de uma vida de homem? As mulheres que amou, os livros que leu, os filhos que fez? Não é certo. Os filmes que viu, as viagens que realizou, os lugares que contribuiu para povoar? Sabe-se lá. Tudo o que escreveu, uma parte do que escreveu, nada do que escreveu, coerências, incoerências, traições, fidelidades? Ninguém pode responder. Mas nós que o olhámos e o vimos, nós que o estimámos ou não o estimámos, nós que o lemos mas deixámos de o ler, podemos, pelo menos agora, mantê-lo na memória que dele conservamos – enquanto também ela, como a dele, não se extinguir.

Encontrámo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, lá pelos anos 60. O futuro adivinhava-se-lhe promissor, depressa se tornou conhecido, pois ainda muito jovem começou a publicar textos sobre os autores que preferia – e foram muitos, a começar pelos que marcaram o estruturalismo. Depois íamo-nos vendo, quase sempre por acaso, almoçámos em grupo com amigos ou simples conhecidos, cruzávamo-nos na rua, nos cafés, nas livrarias. Foi precisamente numa livraria que decorreu o nosso último encontro, poucos meses antes de ele morrer: falou-me da doença, mostrou-se optimista quanto à sua evolução, embora a vida de seu pai tivesse sido ceifada por um mal idêntico. E despedimo-nos até sempre, para sempre.

Eduardo Prado Coelho (1944-2007), quando redigiu, entre 1991 e 1992, em plena era «cavaquista», este «Diário», era conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Paris, cidade que o fascinava e onde se sentia «em casa», aliás como muitos da geração a que pertencia. «Devorava» os livros que comprava nas sumptuosas livrarias da Rive Gauche, preenchia o tempo que lhe restava mantendo-se a par de quase tudo o que se fazia em matéria de cinema, assistia a bom número de conferências e espectáculos. De tudo isso nos fala, sobre tudo isso exprime opinião fundamentada, positiva ou negativa. Não se mantinha, porém, alheado de Lisboa, ainda que maldizendo as medíocres mentalidades universitárias que tão bem conhecia. E não conseguia esquecer as querelas à portuguesa em que se encontrou envolvido e os seus «inimigos» de estimação, como António-Pedro Vasconcelos, Miguel Esteves Cardoso, Sousa Tavares ou Vasco Pulido Valente, cujas pessoas e obras não poupava, tal como não se cansava de admirar sem restrições ou quase sem restrições, entre os portugueses, Eduardo Lourenço, Fernando Gil, Vergílio Ferreira, Herberto Helder, Nuno Júdice, Manoel de Oliveira, Luís Miguel Cintra, Agustina Bessa-Luís, Maria Gabriela Llansol ou Maria Velho da Costa. Quanto às suas referências estrangeiras, eram, sobretudo, Lacan, Michel Foucault, Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Giorgio Agamben, Dylan Thomas, Georg Trakl, Jacques Roubaud ou Sylvia Plath, ao passo que mantinha com Ezra Pound, Céline ou Heidegger uma relação póstuma de amor/ódio que não era explicável apenas em termos estritamente políticos.

Duas citações, uma de Ludwig Wittgenstein, outra de Paul Valéry, abrem o «Diário». Eis a última: «A relação da obra com o autor é uma das coisas mais curiosas: a obra nunca permite recuar até ao verdadeiro autor. Apenas a um autor fictício. O verdadeiro autor – e tudo o que ele não escreveu.» E a primeira: «O meu trabalho compõe-se de duas partes: a que se apresenta aqui e a que corresponde a tudo o que não escrevi. Esta segunda parte é sem dúvida a mais importante.» Nasce, cresce e não morre então um equívoco de que Eduardo Prado Coelho não se dá conta sempre que se refere ao autor do «Tratado Lógico-Filosófico» e das «Investigações Lógicas»: é que o Wittgenstein «secreto» escreveu nos seus «Diários» muito e muito acerca daquilo de que afirmava não se poder falar, incluindo Cristo, a quem, aliás, o autor destes dois volumes de tão intensas quanto extensas «confissões» se mostra de uma insensibilidade enciclopédica.

Diz-nos Prado Coelho: «Sempre vivi entre palavras, através dos textos que escrevi sobre os textos dos outros, e as citações são o material que me habituei a trabalhar.» (…) «Alguns supõem que, pelo facto de se citar, não se pensa. Talvez pretendam convencer-se de que, pelo facto de não citarem, pensam.» Ou seja, como o próprio sugere, apoiado – mais uma vez – numa citação: os livros segregam o pensamento como o fígado segrega a bílis. Será que a «isto» se pode chamar «vida interior»? O diarista parece não duvidar que sim, mas é difícil conceber que não há uma vida interior mais profunda do que aquela que nos é suscitada pelos livros que lemos ou pelas obras de arte em que encontramos uma parte de nós ou que tornam mais consciente uma parte do que somos. Cultivando «um narcisismo da não- interioridade», é possível aproximarmo-nos mais, um pouco mais, seguindo uma via estética, lúdica, sempre a um passo da futilidade, dos grandes temas que são o amor, a morte, Deus? E será por acaso que, de súbito, deparamos com esta confissão, depois de nos revelar por que motivos práticos não cursou Filosofia: «A única coisa de que sinto efectivamente falta é de ter sido obrigado a estudar sistematicamente certos autores: Platão, Aristóteles, Espinosa, Leibniz, Kant, Hegel.» Acrescente-se: foi pena que também não tivesse «estudado» bem o Wittgenstein «secreto».

Em termos políticos, Eduardo Prado Coelho reconhece: «Que evoluí da esquerda para a direita, sem dúvida. Mas sempre empenhado em perceber a ideia de Esquerda – e o desejo da Esquerda.» Se não é verdade, não é mal desculpado… Mas atreve-se a perguntar: «Porque será que nos textos sobre cultura de António Barreto ou Vasco Pulido Valente, de Sousa Tavares ou Pacheco Pereira, sentimos apenas os efeitos de ressentimento e nenhum desejo de utopia?» E remata: «Gostaria que houvesse um país onde fizesse sentido a governação de Vítor Constâncio.» Teria mantido este desejo até ao fim? Como o tempo passou desde que Prado Coelho dizia adorar o «Pour Marx» de Althusser ou assinava panegíricos de Vasco Gonçalves…

Eduardo Prado Coelho, «Tudo o que não Escrevi», 3.ª edição, Asa, 2008, 367+423 páginas