O catolicismo e seus «vencidos» (Jorge Revez)

António Rego Chaves

Joana Lopes, em livro já recenseado neste espaço («Entre as Brumas da Memória»), acentuava que, para alguns católicos, após o Vaticano II, a comunidade «ocupou o lugar de próprio Deus». Perspectiva perturbadora mas, sem dúvida, com fundamento na realidade observada. Impunha-se, no entanto, esclarecer alguns «pormenores»: afinal, que se quis significar quando se continuou a dizer «Deus»? A quem se dirigia o crente quando orava, se é que orava? Que fez do Paraíso e do Inferno, da fé de Teresa d’Ávila e de João da Cruz, da alma imortal, da ressurreição dos mortos?

Jorge Revez não responde a estas perguntas. Empenha-se, sim, em entender um tempo que não foi seu – porque nascido em 1980 – e até talvez o entenda melhor do que muitos que o viveram angustiados, tacteando no escuro, à procura de algo de palpável, imanente ou transcendente, maternal ou paternal, um porto seguro que substituísse a religião da sua infância. Mas também ele tacteia no escuro, porque o puzzle é por de mais complexo: trata-se, nem mais nem menos, de «salvar» uma ideia de Deus por entre os destroços de um descrédito planetário (Pio XII) e português (Cardeal Cerejeira). Só por «milagre» poderia ter êxito, ainda que parcial.

Os dados estavam há muito lançados quando se manifestaram o poeta Ruy Belo e o sacerdote católico Felicidade Alves (1925-1998). O primeiro vinha do Opus Dei, fugira dele a sete pés, enfim senhor de escrever o que queria escrever, sem a solícita batuta do seu «director espiritual». Decidiu então deixar de ser «menino bem-comportado», aliás tinha boa idade para isso, nascera em 1933, estava-se em 1961. Quanto ao pároco de Belém, enfrentou tudo e todos para ter o direito de dizer não, fosse no púlpito ou fora dele, à Guerra Colonial, à miséria e à carência de liberdade de tantos portugueses. Pagou caro o atrevimento, mas, se foi um «vencido do catolicismo», como sustenta Jorge Revez no seu trabalho, foi também um vencedor na luta pela dignidade de todos, pois nunca calou suas verdades.

Voltemos a Ruy Belo, autor de «coisas» como as que se seguem, dando o mote a uma época e, talvez, a uma geração de nados-católicos, mas não de nados-mortos, e desprezando «reais paços de rondós e redondilhas»: «Nós os vencidos do catolicismo/que não sabemos já donde a luz mana/haurimos o perdido misticismo/nos acordes dos carmina burana.» (…) «Nesta vida é que nós acreditamos/ e no homem que dizem que criaste/ se temos o que temos o jogamos/‘Meus deus, meu deus, porque me abandonaste?’»

Não ficou por aqui o poeta revoltado. Arremessou destes versos, como se pedras fossem, contra quem de futuro quisesse tornar menos amarga a sua ideia: «Loucura é colocar em outra vida/a esperança que perdida mesmo nesta/só nesta e não noutra pode pôr-se/ porque nenhuma existe depois desta/a não ser esta em terra transformada.» Em vão se dirá que tal concepção é conciliável com a de São Paulo, que logo nos ocorre, retirada da Primeira Carta aos Coríntios: «Se a nossa esperança em Cristo é apenas para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens.» Não, o poeta que negava a «outra vida» já tinha deixado de ser cristão. Seria digno de compaixão? Mas quem se compadeceria dele? Deus? Mas qual Deus? O da sua infância, o dos teólogos, o dos exegetas da Bíblia?

Mostrámos apenas a ponta do icebergue da comunidade dos católicos sem Igreja. Por baixo ficaram incómodos e silenciados padres, como Joaquim Alves Correia (1886-1951) ou Abel Varzim (1902-1964), opositores ao Estado Novo; e muita outra gente também de bem como Nuno Bragança, João Bénard da Costa, Alçada Baptista – «católicos progressistas», dizia-se, evocando os que durante a Resistência francesa se juntaram aos comunistas na luta contra o ocupante nazi –, gente que pensava pela sua própria cabeça e arriscava, uns mais, outros menos, fazenda, comodidades, estatuto social. Burgueses, claro – mas correndo o risco de deixar de o ser, ou mesmo o de nada ser. Gente talvez cheia de defeitos – mas virtuosa.

Eis a questão de fundo, no que se refere ao enquadramento dos «vencidos do catolicismo» na sociedade portuguesa entre 1958 e 1974: o abandono de uma Igreja acusada de colaborar com o salazarismo e o caetanismo quedou-se sempre pelo simples repúdio da instituição, ou terá, em múltiplos casos, conduzido à perda da fé? Aí está o nó do problema – e não é fácil desatá-lo quando se trata de Ruy Belo e Felicidade Alves. Este chegou a considerar, preto no branco: «Sou ateu, sem conflito nenhum»; mas alguém saiu a terreiro para dizer que não era bem assim, que antes ou depois o antigo sacerdote tinha emitido declarações que apontavam noutro sentido. O mesmo se passou com Ruy Belo, apesar de o poeta afirmar que «nenhuma [vida] existe depois desta». Poderia ter sido mais claro, gritando mais alto?

E, em todo este processo, há que não esquecer a carta dirigida pelo Cardeal Cerejeira a Marcelo Caetano em 8 de Outubro de 1968, ainda a procissão policial ia no adro: «A presença do Pe. Felicidade como pároco de Belém, bem o sinto, é escândalo público que é urgente terminar. (…) Reconheço que não é só com bondade que se governa, e não constituirá este caso um precedente. Aí tem V. Ex.ª o caso dos Olivais, como medida enérgica de extracção do abcesso. (…) Dentro de pouco o caso escandaloso de Belém estará eclesiasticamente jugulado, para paz de nós todos. (…) Hoje, estou convencido que dele nada resultará, e tenho pressa, como V. Ex.ª, de acabar com isto.» Logo no mês seguinte, o digno pároco de Belém seria demitido.

Não surpreende, pois, que boa parte dos «vencidos do catolicismo» tenha engrossado as fileiras democráticas. Sobre essa vertente da questão se debruçou João Miguel de Almeida, em «A Oposição Católica ao Estado Novo – 1958-1974», obra de que aqui já nos ocupámos em devido tempo.

Jorge Revez, «Os ‘Vencidos do Catolicismo’ – Militância e Atitudes Críticas (1958-1974)», Universidade Católica Portuguesa, 2009, 205 páginas