D. Manuel I (João Paulo Oliveira e Costa)

Malhas de um Império extinto

António Rego Chaves

Foi «Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar em África, senhor da Guiné e da conquista, da navegação e do comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia». Para tão longe alcançar, teve de ver morto seu irmão D. Diogo às mãos do cunhado, D. João II, após o que viria a ser alcandorado pelo monarca em duque de Beja, senhor de Viseu, Covilhã e Vila do Conde, governador do mestrado de Cristo, condestável do Reino e fronteiro-mor de Entre-Tejo e Guadiana. Do soberano, que lhe matara o mano, aceitou, pois, os títulos e as honras – beijando a mão do assassino.

Contra «velhos de Restelo», D. Manuel I protagonizou o extinto Império. Mas que Império era esse, nos primeiros decénios do século XVI, edificado nos quatro cantos do Mundo por uma nação de pouco mais de dois milhões de habitantes? «Do Brasil às Molucas, menos de quarenta mil portugueses chegavam para manter o bloqueio económico, proteger as feitorias e guarnecer as fortalezas, inspirar terror e infligir castigos aos rebeldes contra a sua supremacia, colonizar quatro arquipélagos e uma longa tira de costa num continente novo» (Oliveira Marques). Por alguma razão Francisco I chamou «rei merceeiro» ao sucessor de D. João II. É certo que o monarca francês não dependia menos do comércio – mas aparentava desdenhá-lo.

Pergunta João Paulo Oliveira e Costa: «Quando [D. Manuel I] subiu ao trono, alguém imaginaria que passados 26 anos já não existiria o império mameluco, em parte por sua causa? Alguém admitiria que a poderosa Veneza viria a Lisboa mendigar especiarias? Alguém pensaria que Portugueses poderiam conquistar cidades da Ásia? Alguém julgaria que uma embaixada portuguesa chegaria à China?» Talvez só o «Príncipe Perfeito», que tudo sonhara, pudesse responder a tão amplas interrogações.

Porque, queiram ou não queiram alguns biógrafos do «Venturoso», tudo ou quase tudo o que de significativo D. Manuel I levou a cabo no domínio da expansão portuguesa se encontrava inventariado na herança de D. João II. Quanto às riquezas do Reino – que pouco tiveram a ver com a condição da generalidade da população –, sintetizou com uma lhaneza dificilmente superável Maria Emília Cordeiro Ferreira: «O dinheiro ou se esgotava no fausto da corte, na manutenção de uma multidão de parasitas, na preparação das frotas, ou passava ao estrangeiro, para adquirir os produtos manufacturados de que se abasteciam a metrópole e o Oriente. Portugal, para cobrir as suas despesas, levantava somas nos mercados da Flandres, sucedendo-se entre si os empréstimos e a acumulação de letras e de juros.»

Reconhece Oliveira e Costa que, «nos primeiros meses da governação, a decisão mais importante de D. Manuel I em relação à expansão ultramarina prendeu-se com o prosseguimento do plano da Índia, que tinha sido arquitectado e executado metodicamente por D. João II.» E acrescenta: «No início de 1496 estava dado o mote do que seria a política ultramarina de D. Manuel I: abertura de uma nova frente comercial e estratégica a oriente, prosseguimento das conquistas em Marrocos, empenho na exploração económica do Atlântico.» O autor intenta, contudo, a inglória tarefa de apresentar o «Venturoso» liberto da sombra do «Príncipe Perfeito», apoiando-se num artigo de Marcelo Caetano e na tese de Luís Filipe Thomaz «sobre a ideia imperial manuelina, que retirou a acção governativa do monarca de uma esfera excessivamente economicista e a ajustou de um modo bem mais realista à mentalidade daquele tempo».

D. Manuel I surgiria, a tal luz, com a mentalidade de um anacrónico cruzado do século XVI, sendo deixadas sem resposta cabal as incómodas perguntas formuladas por Veríssimo Serrão na sua sempre oportuna «História de Portugal»: «Como se justifica o apagamento de Vasco da Gama após o regresso da segunda viagem à Índia, em 1504? O ostracismo a que foi votado Pedro Álvares Cabral, sem o galardão devido ao seu feito? O castigo imposto a Albuquerque após a sua notável actuação no Oriente? Que profundíssimas razões levaram à expatriação de Magalhães e dos seus companheiros de aventura?» Malhas que o extinto Império tecia.

As ibéricas «malhas» imperiais da expulsão de judeus e mouros, associadas às da vergonhosa conversão forçada de milhares «à única fé verdadeira», tal como a chacina de 1506, ocupam também o autor. Narra, recorrendo a Damião de Góis, que em Janeiro de 1497 o soberano deu ordens para que fossem tomados todos os filhos de judeus menores de 14 anos; estes foram distribuídos «pelas vilas e lugares do Reino, onde à própria custa o rei mandava que os criassem e doutrinassem na Fé». D. Manuel, porém, não tomou iguais medidas de coacção relativamente aos mouros, com receio de que os estados muçulmanos exercessem represálias contra a cristandade.

A iníqua política antijudaica do «Venturoso», determinada pelas exigências dos Reis Católicos e pela sua própria ambição de reinar sobre a Península, não ficou por aqui: «A 21 de Abril de 1499 o rei ordenava que os cristãos-novos que saíssem do país perdessem as fazendas e a 29 de Março de 1500 determinava que os bens dos cristãos-novos ‘que se foram depois da nossa defesa’ deveriam ser entregues ao Hospital de Todos-os-Santos.» Além disso, já proibira os cristãos-novos de se casarem entre si, esperando que no espaço de uma ou duas gerações a antiga comunidade hebraica se diluísse na cristandade – o que era desde logo irrealista, pois tanto os «cristãos-velhos» como os de origem judaica recusavam os casamentos «mistos».

Quanto à chacina de judeus em Lisboa, destaca o historiador «um aspecto básico, do ponto de vista social: a facilidade com que os cristãos-novos eram identificados na rua, e mesmo com que as suas habitações eram distinguidas. Este simples facto mostra-nos claramente o modo como a política manuelina relativamente aos judeus baptizados fracassara, pois a comunidade permanecera segregada». Que presságio, em pleno Império…

João Paulo Oliveira e Costa, D. Manuel I, Temas e Debates, 2007, 448 páginas