Frustrados e ressentidos (Marc Ferro)

António Rego Chaves

Que é o ressentimento? Diz-nos um dicionário: «sentimento de mágoa por ofensa recebida ou injustiça de que se foi vítima». Quanto a Marc Ferro, sustenta que as reflexões de Nietzsche acerca do tema, em «A Genealogia da Moral», e as de Max Scheler, em «O Ressentimento na Construção da Moral», são filosóficas ou psicológicas e «incidem essencialmente sobre os indivíduos» – o que, diga-se, nos parece difícil demonstrar, quer em relação a Nietzsche, para quem o ressentimento, máscara da «vontade de poder» dos «fracos», é a chave da explicação do cristianismo, quer no que toca a Max Scheler, que também não esquece a dimensão sociológica do ressentimento.

Marc Ferro diz, ainda, sobre o ressentimento: «Fenómeno individual ou colectivo que afecta tanto grupos como nações ou comunidades inteiras, é mais difícil de apreender do que, digamos, a luta de classes ou o racismo. Entre outras razões, porque se manteve latente e pode interferir, tanto com a luta de classes e com o racismo, como com o nacionalismo ou outros fenómenos, como em Madrid [atentados da Al-Qaeda de 2004], e em Lausanne [atentado de arménios em 1973]». Porquê estas cidades? Madrid, porque «a humilhação de que o Islão é vítima remonta à expulsão dos mouros de Espanha em 1492»; Lausanne, porque, cinquenta anos antes, «os vencedores da Grande Guerra traíram a promessa que tinham feito em Sèvres em 1919: permitir a constituição de uma Arménia independente».

Acrescenta o historiador: «No indivíduo como no grupo social, na origem do ressentimento está sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um traumatismo. Quem se sente vítima não pode reagir, por impotência. Rumina a sua vingança que não pode pôr em marcha e que constantemente o atormenta. Até que acaba por explodir. Mas esta espera pode também ser acompanhada de desqualificação dos valores do opressor e de revalorização dos seus, dos da sua comunidade que até aí não os defendera conscientemente, o que dá uma força nova aos oprimidos, segrega uma revolta, uma revolução ou então uma regeneração.»

Neste contexto se impõe uma referência a «Sociologia da Revolução», obra magistral de um muito perspicaz reaccionário, o sociólogo francês Jules Monnerot (1909-1995), na qual se encontram explicitados alguns perturbadores desenvolvimentos comuns à Revolução Inglesa, à Revolução Francesa, à Revolução Russa, à «Revolução Fascista» de Benito Mussolini e Adolf Hitler e, até, ao «episódio francês de Maio-Junho de 1968».

Ferro estuda quatro temas: «Escravos e perseguidos: um ressentimento milenar»; «Revoluções: o papel do ressentimento»; «A memória nacional, viveiro de ressentimentos» (Polónia, Áustria, França-Inglaterra, Alemanha-França); «Pós-colonização e comunitarismo» (negros e índios americanos, colonizados, Islão). Quanto às Revoluções, os subtítulos referem-se à França de 1789, à Rússia de 1917, à França de 1968, à Alemanha derrotada em 1918, depois nazi, e à França ocupada em 1940, a de Vichy. Demasiado nítidas, é inegável que por aqui pairam as velhas teses de Jules Monnerot.

«Escravos e perseguidos» parte das revoltas de escravos na Grécia e em Roma, na Antiguidade, com relevo para a de Espártaco, e refere as perseguições sofridas pelos cristãos, e a posterior transformação destes, após a conversão do imperador Constantino, em perseguidores. Pergunta o historiador: «Como explicar a reviravolta que resulta (…) em que o ressentimento das vítimas – os cristãos – as transforma em perseguidores, não contra o Estado e o imperador, uma vez que este se converteu, mas contra os pagãos, os judeus e, mais ainda, contra cristãos como eles?» Os judeus são então definidos como deicidas, sabe-se, e essa acusação, tão injustificável quanto trágica, perdurará, com todos os seus sinistros efeitos, até aos dias de hoje, com a beatificação do Papa Pio IX, que chamava aos judeus «cães»; mas a cruzada contra os «hereges» albigenses e as chacinas de protestantes não são explicáveis só pelo ressentimento. O absolutismo católico, aliado ao absolutismo monárquico, configurava um totalitarismo ideológico – e, como qualquer totalitarismo ideológico, não admitia réplica.

Agora a Revolução. «Foi para voltar a cair sob o jugo da aristocracia dos ricos que quebrámos o jugo da aristocracia feudal?» – perguntava Robespierre. Eis, numa só frase, o drama de todas as revoluções: quaisquer que sejam as suas orientações programáticas, sempre alargam o campo de acção dos ressentimentos, das invejas, das vinganças. Quanto tudo é posto em causa – elites de nascimento, de dinheiro, de mérito, de competência – tudo se renova. Mas nada garante que a Revolução não gerará outras elites fundamentadas no nascimento, no dinheiro, no mérito, na competência.

Acentua Marc Ferro: «Uma reviravolta invisível, a passagem de uma revolução que, em nome da equidade, pretende pôr fim à arbitrariedade, para uma revolução que, para sobreviver, se vinga dos ultrajes passados: eis um fenómeno que observámos em França a partir de 1792 e voltámos a encontrar na Rússia de 1917.» E alvitra: «Não terão sido os acontecimentos de Maio de 1968, nomeadamente em França, a seu modo e pelo menos em certa medida, a expressão de um ressentimento contra as elites?»

Concluindo: «Na História, o ressentimento foi a matriz das ideologias contestatárias, de esquerda como de direita. As frustrações que o suscitam, tanto as promessas traídas como as desilusões ou as feridas infligidas, provocam uma cólera impotente que lhe dá consistência. O sofrimento de ser pobre, excluído, tal como o medo de empobrecer, alimentaram muitos movimentos sociais cujo destino não estava previsto de antemão.» E quanto a «amanhãs que cantam»? A resposta a esta pergunta está longe de ser animadora: «As desilusões que tomaram o lugar das grandes esperanças», por exemplo, «o aperto das grilhetas imposto pelo desenvolvimento da mundialização», vão decerto implicar uma multiplicação dos focos de ressentimento, «como bem demonstra a experiência do século passado»...

Marc Ferro, «O Ressentimento na História», Teorema, 2009, 218 páginas