António Rego Chaves/Wittgenstein: a lógica e o «pecado»

A ABRIR. No Outono de 1950, escassos meses antes de morrer, Ludwig Wittgenstein (LW) visitava pela última vez a sua «cabana» de Skjolden, na Noruega, onde, durante decénios, tantas vezes se refugiara para meditar e escrever. Passado mais de meio século, evocamos alguns aspectos menos divulgados ou mesmo pretensamente secundários da obra daquele que foi um dos mais controversos – e geniais – pensadores do século XX e que Thomas Bernhard caracterizou de forma lapidar: «Wittgenstein é uma pergunta a que não é possível dar resposta.» O texto que se segue constitui uma visão assumidamente PARCIAL de LW (1889-1951), prestando uma atenção preferencial a problemas que constituíram, pelo menos desde o início da Primeira Guerra Mundial, o núcleo das preocupações existenciais do grande filósofo austríaco – que, aliás, só poderia ser verdadeiramente compreendido após a publicação de milhares de páginas das suas obras póstumas. A partir de então, cremos, deixou de ser possível impor a imagem de LW como a de alguém quase exclusivamente interessado pelos problemas da lógica e da linguagem, facto que decepcionou muitos dos seus antigos «fãs» universitários e provocou a deliciada curiosidade daqueles que antes o consideravam apenas como um antimetafísico ou mais um representante, ainda que insigne, do chamado «positivismo lógico».

ANOS 60. Fazendo-se transportar num irresistível descapotável, o jovem, rico e resistível assistente de Teoria do Conhecimento desembarcou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Alunas de saltos altos e saias travadinhas gemiam de olho arregalado, enquanto Sua Excelência debitava excelentíssimas verdades tomando como ponto de partida – e de chegada – o Círculo de Viena (Moritz Schlick, Friedrich Waismann, Herbert Feigl, Rudolf Carnap), aliás dado a conhecer pelas doutas palavras de catedráticos britânicos. Alinhavam-se nomes: Francis Herbert Bradley, Gottlob Frege, George Edward Moore, Alfred Julius Ayer, Bertrand Russell e (ai!) Ludwig Wittgenstein.Tudo se resumia a uma espécie de «slogan» que abriria as portas do futuro aos matemáticos e as fecharia aos lunáticos e «ultrapassados» filósofos gregos, medievais, modernos e contemporâneos: abaixo a Psicologia a Metafísica, arquivem-se os problemas filosóficos pendentes, viva a Lógica! Adeus Heraclito e Parménides, Platão e Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, Espinosa e Leibniz, Kant e Hegel, Husserl e Heidegger. Em boa verdade, era o fim da Filosofia, a sua «implosão», o «haraquiri» dos amigos da sabedoria. Seria mesmo o fim da Filosofia? E se sim, de qual Filosofia? A das persistentes e incómodas perguntas sobre o sentido da existência humana ou a das «definitivas» respostas dos solenes funcionários das certezas lógicas?

A CRISE. Tudo isto se passava no ano de 1962, em plena «crise académica». Entre manifestações, plenários e cargas policiais, engolíamos a insípida pílula do neopositivismo que nos era receitada pelo resistível «menino-bem» do irresistível descapotável, à margem do processo histórico.

Verdades congeladas, esqueléticas, cinzentas, vinham ocupar o espaço de inquietação antes preenchido pelos nossos anjos tutelares – Albert Camus ou Jean-Paul Sartre, Kierkegaard ou Unamuno. Verdades que nos passavam ao lado, incapazes de nos tocar, fazendo-nos sentir que escolhêramos o curso errado, porque o futuro da Filosofia seria, afinal, não ter futuro nenhum, segundo nos dava muito arrogantemente a entender o «playboy» de fatinho de flanela, sapatos de camurça e charuto comprido como um nariz de Pinóquio que nos dava aulas. Mas não nos concederam muito tempo para desesperar, as caridosas autoridades da época: ocupámos os últimos meses do ano lectivo a lutar contra elas e, para os que, «a bem da Nação», não foram expulsos de «todas as escolas de Lisboa», a Filosofia continuou como dantes: Ontologia, Ética, Estética, o que era decerto bem mais humanóide do que dois e dois são quatro. Quanto ao frívolo «sabe-tudo» de sapatinhos de camurça, desapareceu para sempre do horizonte das nossas preocupações…

UM NOME. Durante muitos anos, ficou-me apenas um nome para recordar entre todos os novos ídolos que tinham decretado o fim da Filosofia tal como eu a entendia: Ludwig Wittgenstein. Só ele me aguçara a curiosidade de conhecer a obra que produzira e da qual apenas lera – ainda que em diagonal, há que confessá-lo – o «Tractatus Lógico-Philosophicus» (TLP), publicado em 1921. Com o tempo viria a compreender como tinha sido fatal, para muitos de nós, ver o seu nome associado aos de Russell, Bradley, Frege, Moore e Ayer.

Confundidos pela visão redutora que nos fora fornecida, era-nos impossível, aos que procurávamos na Filosofia algo de radicalmente diferente de um «interessante» jogo de xadrez ou de uma saudável ginástica intelectual, pressentir em Wittgenstein mais do que um espírito debruçado sobre problemas porventura muito estimulantes para os neurónios mas que nada tinham a ver com o nosso desejo de existir e de compreender o sentido da existência, se é que a existência tinha algum sentido.

O EQUÍVOCO. Já não nos bastavam a «teologia científica» e o «socialismo científico», tínhamos agora de «pegar de caras» uma «filosofia científica». Ironicamente, pressentíamos, o destino da «filosofia científica» só poderia ser, tal como o da «teologia científica» e o do «socialismo científico», lançar o descrédito sobre o labor desenvolvido pelos seus arrogantes cultores. Deus, o Socialismo e a Filosofia em nada seriam iluminados pela pretensão de demonstrar o indemonstrável, de reivindicar a propriedade exclusiva de inalcançáveis verdades absolutas, de dizer de uma vez por todas o dizível e o indizível.

Definindo o «Tractatus Logico-Philosophicus», o seu autor escreverá: «Todo o sentido do livro pode ser resumido pelas seguintes palavras: o que é de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio.» Mais tarde, LW deixará mesmo claro que, no TLP, o essencial não é o que escreveu, mas, precisamente, o que não escreveu. Assim: «A minha obra comporta duas partes: a que aqui se apresenta e tudo o resto que não escrevi. E é justamente essa segunda parte que importa.» Quer isto dizer que o filósofo silencia a verdadeira Filosofia, ocultando-a sob o manto nada diáfano de uma aparentemente serena reflexão sobre os limites da linguagem. Assim conquista a respeitabilidade no serralho universitário de Cambridge – que visceralmente despreza – e passa a certos dicionários da especialidade como corifeu do «positivismo lógico».

Nota Christiane Chauviré: «Os membros do Círculo de Viena fizeram uma leitura positivista e antimetafísica do «Tractatus». Wittgenstein que, pelo seu lado, considera sem dúvida o positivismo deles como simplista e vulgar, tenta fazer-lhes compreender isso mesmo, servindo-se de toda a espécie de tácticas dissuasoras, nomeadamente a que consiste em ler, durante os debates, poemas (místicos) de Rabindranath Tagore.»

DESCOBERTA. «A toda uma geração dos seus discípulos foi possível tomar Wittgenstein por um positivista, pois possui algo de enorme importância em comum com os positivistas: o facto de traçar a fronteira, tal como eles, entre aquilo acerca de que se pode falar e aquilo que devemos calar. O positivismo sustenta – e essa é a sua essência – que aquilo sobre que podemos falar é tudo o que importa na vida, ao passo que Wittgenstein cria apaixonadamente que aquilo que na realidade importa na vida humana é precisamente aquilo que, segundo a sua perspectiva, devemos calar.» (Paul Engelmann).

Poderia ter ficado por aqui, na dúvida sobre o verdadeiro pensamento do autor do «Tractatus». Mas, um dia, descobri, rigorosamente por acaso, os «Diários Secretos» de LW. Escritos entre 1914 e 1916, na Primeira Guerra Mundial, quando Wittgenstein estava em plena frente de batalha e se encontrava obviamente com pouca disposição para brincar às vogais e às consoantes – «o constante confronto com a morte favorecia a reflexão sobre as questões essenciais», sublinha Wilhelm Baum –, revelaram-me um outro Wittgenstein, o leitor angustiado de Tolstoi e da sua «Breve Exposição do Evangelho», vivendo «uma fé sem palavras», incapaz de não meditar simultaneamente sobre a lógica e o «pecado», a masturbação e a filosofia das matemáticas. Um «racionalista místico» que ousa perguntar-se e perguntar a Bertrand Russell: «Como posso ser um lógico sem ser antes um homem?»

Eckhard Nordhofen falará das «raízes religiosas do silêncio mais eloquente do nosso século», o de LW, um silêncio sobre o que há de mais importante, «sobre aquilo que não se deixa dizer». Trata-se de «teologia negativa no seu mais puro grau». Teologia negativa que, porém, não impede Wittgenstein de escrever com aterradora firmeza: «O ser humano só precisa de Deus.» Paul Engelmann, poeta e seu amigo, compreende a personagem e explica: «A linguagem de Wittgenstein é a linguagem da crença muda.» Os problemas que o ocupam talvez não sejam susceptíveis de solução, mas decerto são ainda menos susceptíveis de dissolução no seu espírito. Até à morte, manterá a sagrada inquietação de saber mais, de compreender melhor, num esforço por vezes desesperado para alcançar a paz interior. Saber mais e compreender melhor, não a lógica ou a gramática, mas o sentido da existência. Em vão?

DEUS. «O cristianismo é a única via segura para atingir a felicidade», escreve o jovem Wittgenstein, aos 25 anos, em Dezembro de 1914, quando as circunstâncias da «Grande Guerra» o confrontam com a possibilidade de, a qualquer momento, encontrar a morte que parece procurar na frente de batalha. E, em 1946, altura em que lhe restam apenas cinco anos de vida e o cancro da próstata vai começar a devorá-lo: «A religião é, por assim dizer, o fundo marinho tranquilo mais profundo, que permanece sereno por mais que as ondas se ergam.» Nesta genial e revolta cabeça austríaca entrechocam-se Schopenhauer, Angelus Silesius, Kierkegaard, William James, Tolstoi. O resultado dará que pensar seja a quem for, agnóstico, crente ou ateu:

«Não sou um homem religioso, mas não posso deixar de ver qualquer problema de um ponto de vista religioso.»

«Crer em Deus quer dizer compreender a pergunta acerca do sentido da vida.»

«O cristianismo não é uma doutrina, quero dizer, uma teoria sobre o que aconteceu e o que acontecerá à alma humana, mas a descrição de algo que se produz realmente durante uma vida humana. Porque a consciência do pecado é um acontecimento real, tal como o desespero e a salvação pela fé. Os que falam de tais coisas descrevem simplesmente o que lhes aconteceu, seja o que for que possam dizer as glosas.»

«Não posso ajoelhar-me para rezar porque, por assim dizer, os meus joelhos estão rígidos. Temo a minha dissolução, se amolecesse.»

«É verdade que preferiria fazer-me sacerdote, mas também como professor ensinarei o Evangelho às crianças.»

Escreve Ray Monk, por muitos considerado o mais importante biógrafo de LW, sintetizando o pensamento do autor do «Tractatus» acerca das relações entre as crenças religiosas e a ciência: «O ateu, que despreza a religião porque não encontra provas em favor das suas suposições, e o crente, que procura provar a existência de Deus, são ambos vítimas do «outro» – da idolatria do modo de pensamento científico. As crenças religiosas não são análogas às teorias científicas e não deveriam ser aceitas ou rejeitadas de acordo com os mesmos critérios de demonstração.»

Eis transfigurada a imagem do «Tractatus», que terá de ser relido a esta luz, com redobrada atenção, até ao fim, ao famoso «silêncio». Silêncio que, afinal, não é silêncio sobre nada mas silêncio sobre Algo. Algo a que Ludwig Wittgenstein só poderá chamar, doa a quem doer, Deus.

REGRESSO. Impunha-se regressar ao «Tractatus» e relê-lo à luz dos «Cadernos Secretos». Tornar-se-iam assim um pouco menos obscuros – ainda que por vezes feridos pela ambiguidade ou pela desesperante complexidade – alguns versículos de LW. Como ficará demonstrado pela simples transcrição que se segue, o «Tractatus», que muitos chegaram a considerar como «a Bíblia do positivismo lógico», só poderia ser tomado como tal se não fosse decifrado até ao fim, altura em que as proposições «filosófico-transcendentais» se impõem ao leitor como uma severa advertência no sentido de não integrar a angústia de Wittgenstein na risível auto-satisfação dos «iluminados» do Círculo de Viena.

Exemplos retirados das páginas finais:

6.41 - «O sentido do mundo tem que estar fora do mundo.»

6.42 - «Não pode haver proposições da Ética. As proposições não podem exprimir nada do que é mais elevado.»

6.421 - «É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras. A Ética é transcendental. (A Ética e a Estética são Um).»

6.422 - «O primeiro pensamento que ocorre quando se institui uma lei ética da forma «Deves…» é: E o que acontece se eu o não fizer? Mas é óbvio que a Ética nada tem a ver com o castigo e a recompensa, no sentido vulgar. Logo, a pergunta acerca das consequências de uma acção tem que ser irrelevante. Pelo menos estas consequências não podem ser acontecimentos. Em todo o caso, o género de pergunta tem algo de correcto. Tem que existir uma espécie de recompensa ética e castigo ético, mas estes têm que estar na própria acção. (E é óbvio que a recompensa tem que ser algo de agradável e o castigo algo de desagradável).»

6.423 - «Não se pode falar da vontade como suporte do juízo ético. A vontade como fenómeno só interessa à Psicologia.»

6.431 - «Com a morte o mundo não se altera, cessa.»

6.4311 - «A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte. Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita mas como a intemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente. A nossa vida é infinita, tal como o nosso campo visual é sem limites.»

6.4312 - «A imortalidade temporal da alma humana, isto é, a sua sobrevivência eterna mesmo depois da morte, não só não está garantida como também a sua suposição não realiza de todo o que com ela se queria alcançar. É algum enigma resolvido pelo facto de eu sobreviver eternamente? Não é esta vida eterna tão enigmática como a presente? A solução do enigma da vida no tempo e no espaço está fora do tempo e do espaço. (Os problemas a resolver não pertencem às ciências da natureza.)»

6.432 - «Como o mundo é, é para O que está acima completamente indiferente. Deus não se revela no mundo.»

6.52 - «Sentimos que, mesmo quando todas as possíveis questões científicas tivessem recebido resposta, os nosso problemas vitais não seriam minimamente afectados.»

6.54 - «Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.»

Tudo para ler de-va-ga-ri-nho, em fim-de-semana. Ou antes de adormecer, nem que seja um versículo por noite. De preferência, desligar a televisão e escolher um CD de Mozart, sem voz humana, para ouvir em surdina. No fim, talvez (re)começar com os Evangelhos – como faria Ludwig Wittgenstein.

FÉ. «A sabedoria é fria e, nessa medida, estúpida. (Pelo contrário, a fé é uma paixão).

A sabedoria é cinzenta. Em contrapartida, a vida e a religião estão cheias de cor.

Penso que uma das coisas que diz o cristianismo é que todas as boas doutrinas são inúteis. Que devemos mudar a nossa vida. (Ou a direcção da nossa vida).

Ele diz que a sabedoria é completamente fria; e que não podemos utilizá-la para transformar a nossa vida, tal como não podemos moldar o aço quando ele está frio.

A questão é que uma boa doutrina não tem necessidade de se apossar de nós; podemos segui-la como à prescrição de um médico. Mas no caso presente temos necessidade de alguma coisa que nos faça mexer e nos volte para uma nova direcção. (Quer dizer, é assim que eu o compreendo). Uma vez que nos voltamos, devemos continuar voltados.

A sabedoria é sem paixão. A fé, pelo contrário, é aquilo que Kierkegaard chama uma paixão.»

Tudo para ler de-va-ga-ri-nho, em fim-de-semana. Ou antes de adormecer, nem que seja um versículo por noite. De preferência, desligar a televisão e escolher um CD de Mozart, sem voz humana, para ouvir em surdina. No fim, talvez (re)começar com os Evangelhos – como faria Ludwig Wittgenstein.

CRISTO. Roland Jaccard sobre LW: «A figura do Cristo acompanhá-lo-á até à sua morte. Um Cristo que, pregado na cruz, duvida de Deus, duvida da Humanidade, duvida de si próprio e chega no seu desespero à conclusão de que, nesta farsa absurda que somos chamados a representar, pouco importa que tenhamos sido bons ou maus, vis ou nobres, carrascos ou vítimas, salvos ou condenados…» (…) «É sensível à ideia de Schopenhauer, segundo a qual a crucificação do Cristo surge não apenas para nos lembrar o sofrimento universal e despertar a nossa compaixão, mas também, mas sobretudo, para nos significar que é tempo de pôr fim à nossa esperança num mundo melhor, às nossas ilusões sobre Deus, o futuro, a amizade ou o amor. A realidade, a única realidade, é este homem pregado numa cruz e abandonado por todos.»

LW nos seus «Cadernos de Cambridge e de Skjolden (1930-32, 1936-37)»:

«Às vezes, creio.»

«Não podes chamar ao Cristo o Salvador sem lhe chamar Deus. Porque um homem não pode salvar-te.»

«A fé começa com o facto de crer. Deve-se começar com a fé; das palavras não resulta nenhuma fé.»

«Como o insecto que zumbe em volta da luz, eu giro em volta do Novo Testamento.»

«A minha fé é demasiado fraca. Falo da minha fé na Providência, do meu sentimento de que tudo acontece por vontade de Deus.»

«Se, em lugar de dizeres ‘A fé em Jesus Cristo’ tu disseres ‘Amor do Cristo’, o paradoxo desaparece, quer dizer, a irritação do intelecto. Que é que a religião tem a ver com uma comichão do intelecto?»

É facilmente detectável, neste contexto, a influência do William James de «As Variedades da Experiência Religiosa», obra onde o norte-americano – que LW considerava «um verdadeiro ser humano, qualidade indispensável para ser um bom filósofo» – sustenta que a religião não precisa de ser demonstrada pela via intelectual e que a experiência mística de Deus é um modo superior de O conhecer. É bem certo que Ludwig Wittgenstein estava muito mais próximo de Agostinho ou de Pascal, de Kierkegaard ou de Unamuno, do que de Bertrand Russell e dos cientistas do Círculo de Viena, embora, um dia, tivesse chegado a temer que o seu nome viesse a sobreviver apenas como «terminus ad quem» da grande filosofia ocidental. «Como o nome daquele que incendiou a Biblioteca de Alexandria…»

A QUESTÃO. Afinal, que debate é este? Que discutimos? Para onde vamos? Talvez para muito perto, apenas para um sereno, firme e explícito repúdio do que há de lúdico, de fútil, de frívolo, nas habilidades académicas do filosofar: «Apresentar um trabalho filosófico a um catedrático de Filosofia é o mesmo que deitar pérolas a porcos», dizia Ludwig Wittgenstein. Um outro seu aforismo explica este pretenso «preconceito»: «O pão e os jogos, mas também os jogos no sentido em que as matemáticas, tal como a física, são um jogo. É sempre sobre os jogos que se debruça o espírito deles nas artes, no laboratório ou no campo de futebol.»

O que já nos anos da Primeira Guerra Mundial era evidente pela leitura dos «Diários Secretos», a saber, que só no cristianismo Wittgenstein procuraria saciar a sua sede de pacificação interior, confirma-se nos «Cadernos de Cambridge e de Skjolden», que são mais uma pungente revelação da angústia do filósofo perante o enigma da existência.

«O meu trabalho filosófico surge-me agora como uma distracção do difícil, como um divertimento, um prazer ao qual não me abandono com uma completa boa consciência. Como se fosse ao cinema, em lugar de tratar uma doença.»

«O nosso objectivo é de facto sublime – como poderá ele, então, tratar de sinais falados ou escritos?»

«A tarefa da Filosofia é apaziguar o espírito sobre as questões insignificantes. Aquele que não se inclina para tais questões não tem necessidade da Filosofia.»

De que Filosofia nos fala aqui Wittgenstein? Não certamente naquela que se desenha nos seus «Diários Secretos» ou nos «Cadernos» acima referidos, de que estas citações são extraídas, e que as universidades de todo o mundo procuraram ignorar; mas da Filosofia do carreirismo académico com sede em Cambridge. Da «viril» e «musculada» Filosofia que ignora olimpicamente a culpa, a instabilidade, a inquietação que o atormentam. Da Filosofia emproada, de colarinhos engomados, bengala e chapéu de coco, cuja missão principal parece ser travestir o sentimento trágico da vida em jogos florais do pensamento silogístico. Da Filosofia que não conhece o desespero – e que, por isso mesmo, nunca se confrontará com a urgência de abordar com profundidade o problema da fé. Da Filosofia que não terá a coragem de o entender quando disser: «Tenho uma alma mais nua do que a maior parte dos homens e é nisso que consiste, por assim dizer, o meu génio.»

VALORES. Num livro notável, escrito contra a corrente académica (Ética e Crença Religiosa em Wittgenstein»), Cyril Barrett (CB) considera que o núcleo do pensamento filosófico se centra nos valores. Quer isto dizer que, seja no «Tractatus» ou nas «Investigações Filosóficas», LW passou ao largo daquilo que era realmente importante para ele, a Ética, a Estética, a Religião. CB sustenta, mesmo, que, «por muito heterodoxas que possam parecer as concepções de Wittgenstein, elas estão firmemente enraizadas numa teologia e filosofia da religião tradicionais.» Escreve, ainda: «Aquilo que Wittgenstein tinha para dizer sobre a Ética e a crença religiosa era para ele da maior importância, senão a única coisa importante.»

Barrett conta que, em 1930, Wittgenstein sublinhou que, no final da sua «Conferência sobre Ética», falara na primeira pessoa. Porquê? «Porque para falar do valor absoluto é necessário experimentá-lo», isto é, vivê-lo na carne; caso contrário, será preferível ficar calado. Além disso, a Ética só pode mostrar-se por meio de exemplos. Se os outros não captam o significado do exemplo («verbi gratia», a parábola do bom samaritano), tanto pior para eles. Não se pode fazer nada. Falar não terá qualquer efeito. Também o místico é inexpressável, não pode ser dito, mas pode ser mostrado: em última análise, tudo o que não pode ser expressado (o estético, o ético, o religioso), mas unicamente mostrado, é místico.

Ainda que a crença religiosa seja crença, «é na realidade um modo de viver». A religião é uma forma de vida, não uma forma de ciência. Modo de vida e crença são, portanto, indissociáveis. «O facto de vós e eu levarmos uma vida religiosa não depende do tempo que passamos a falar de religião, mas do facto de a nossa maneira de viver ser diferente.»

E rezar? Rezar é «pensar sobre o sentido da vida»: não se trata da «supersticiosa» oração de petição ou súplica, mas da contemplação mística, a forma mais elevada de alguém se aproximar de Deus Pai. «Crer em Deus quer dizer compreender o sentido da vida.» (…) «A fé religiosa e a superstição são muito diferentes. Uma resulta do medo e é uma espécie de falsa ciência. A outra é uma confiança.»

CERTEZA. Escreve LW referindo-se a Cristo, na obra póstuma «Cultura e Valor»: «Se não ressuscitou dos mortos, então decompôs-se no túmulo como qualquer outro homem. Está morto e decomposto. Neste caso é um mestre como qualquer outro e já não nos pode ajudar; e, de novo, somos órfãos e encontramo-nos sós. Temos assim de nos contentar com a sabedoria e a especulação. Estamos numa espécie de inferno onde não podemos fazer mais do que sonhar, cobertos como que por um telhado e separados do céu. Mas se vou ser REALMENTE salvo, o que necessito é de certeza – não de sabedoria, sonhos ou especulação – e essa certeza é a fé. E é de fé que necessita o meu coração, a minha alma, não a minha inteligência especulativa. Porque é a minha alma com as suas paixões, como se tivesse um sangue e uma carne, que tem de ser salva, não a minha mente abstracta. Talvez possamos dizer: só o amor pode crer na Ressurreição.»

Quem diria que este intelectual austríaco pretensamente «aculturado» em Cambridge seria capaz de reivindicar, com tal quixotismo, digno do melhor Miguel de Unamuno, a fé! Ludwig Wittgenstein, o quase gélido raciocinador das primeiras dezenas de páginas do «Tractatus», deixa escapar um inesperado e patético grito de horror perante a ideia da morte e da ausência de Deus. Depois de tão evidente transfiguração, não será lícito encarar o seu pretenso «positivismo lógico», o seu laborioso e celebrado trabalho universitário, não apenas como um marco importante da Filosofia do Século XX, mas sobretudo como uma sofisticada terapêutica ocupacional que lhe permitiu fugir sem exagerado pânico ao sentimento de culpa, ao desespero e ao suicídio? Decerto que os seus mais ilustres biógrafos não poriam de parte uma resposta afirmativa a esta «provocatória» interrogação…

Só a homossexualidade de LW – que a si próprio se considerava como um «degenerado» –, pode ser evocada para explicar a sua dilacerante «consciência do pecado», que a hipócrita sociedade vienense dos primeiros decénios do século (no seio da qual Freud ainda provocava um incontido escândalo) e a ambiência pós-vitoriana que foi forçado a suportar em Cambridge não podiam deixar de aprofundar. Frontalidade, coragem, bondade, generosidade, intransigente honestidade – algumas bem conhecidas qualidades morais que o caracterizavam –, em nada terão contribuído para que LW superasse o estigma das pseudo-«imoralidades» de que se considerava responsável e o torturaram durante toda a existência. Ironicamente dirá, a 29 de Abril de 1951, na hora da morte, dirigindo-se à mulher do seu médico: «Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa.»

EPITÁFIOS. Arthur Schopenhauer:

«É muito certamente o conhecimento da morte e a consideração do sofrimento e da miséria da vida que dão o seu mais forte impulso à reflexão filosófica e às explicações metafísicas do mundo.»

Ludwig Wittgenstein:

«Bach escreveu na página de título do seu ‘Orgelbuechlein’: ‘À glória do Altíssimo, e que o meu semelhante possa colher benefícios.’ É o que gostaria de dizer do meu trabalho.»

«A solução do problema da vida é uma maneira de viver que faça desaparecer o problema.»

«Não há maior grito de abandono que o de um homem só.»

«Um pensador religioso honesto é como um funâmbulo. Quase se poderia dizer que ele não anda sobre mais nada do que o ar. O seu apoio é o mais fino que se pode conceber. E, no entanto, é verdadeiramente possível andar sobre ele.»

«Quando alguém morre, vemos a sua vida a uma luz conciliadora. A sua vida parece-nos arredondada por uma espécie de vapor. Mas, para ele, ela não era arredondada, era cheia de asperezas e imperfeita. Para ele, não havia reconciliação, a sua vida era nudez e solidão.»

Tudo para ler de-va-ga-ri-nho, em fim-de-semana. Ou antes de adormecer, nem que seja um versículo por noite. De preferência, desligar a televisão e escolher um CD de Mozart, sem voz humana, para ouvir em surdina. No fim, talvez (re)começar com os Evangelhos – como faria Ludwig Wittgenstein.