José-Augusto França («O Ano X - Lisboa, 1936»)

Viver (ou vegetar) em 1936

António Rego Chaves

«O ano de 1936, ‘Décimo’ que foi do regime, isso mesmo, e mais do que qualquer outro, verificava na pessoa, carismática no seu sinuoso e frio pragmatismo, do então presidente do Conselho de Ministros, ministro das Finanças, da Guerra e dos Negócios Estrangeiros (e já, oportunamente, das Colónias), presidente honorífico da União Nacional, colar da Torre e Espada, cidadão de honra de todos os municípios do país, já desde Maio de 1934.» Com estas palavras, José-Augusto França quase termina o seu «estudo de factos socioculturais», pois apenas lhe acrescenta um breve post-scriptum onde se interroga e nos interroga acerca da questão de saber se terá conquistado, «ao cabo deste trabalho fatalmente inglório, o direito de perguntar como era possível viver assim em Lisboa, em 1936».

Não basta recordar a «polícia política omnipresente», com a sua rede de informadores estipendiados, e a Censura, «os dois pilares fundamentais, garantes ‘sine qua non’ do regime, que a colónia do Tarrafal nesse mesmo ano [de 1936] aperfeiçoou, perante, então, mais possíveis e prováveis ameaças comunistas». Há também que não esquecer o papel desempenhado então por instituições como «a Legião Portuguesa, criada na oportunidade da Guerra de Espanha, a seguir à Mocidade Portuguesa, em milícias sucessivas de uma obediência de que a União Nacional definia, em partido único, os preceitos políticos que a sua Assembleia Nacional ecoava».

A 28 de Maio de 1936, Salazar, uma vez «serenado» o País e neutralizados, encarcerados ou exilados os adversários políticos, proclamava «urbi et orbi»: «Senhores: findam hoje dez anos que constituíram na História pátria apenas uma era de Restauração; vão começar outros dez que hão-de constituir uma era de Engrandecimento.» Menos de um ano depois, a 21 de Maio de 1937, portanto já em plena «era de Engrandecimento», o ditador exprimiria em toda a sua extensão o seu cinismo, ao pronunciar-se sobre o criminoso bombardeamento da população de Guernica pela aviação nazi, considerando que «difícil seria explicar o interesse especial inspirado pelo caso, até ao ponto de se propor um inquérito internacional sobre ele».

No Ensino vivia-se sob o regime do indiscutível «livro único» em História, Filosofia e Educação Moral e Cívica, enquanto os professores com «ideias subversivas» eram demitidos. Nas Artes, nas Letras, no Teatro, no Cinema, na Imprensa, silenciar os incómodos tornara-se a palavra de ordem. Os jornais, com raras excepções, reproduziam «a voz do dono», sobretudo no que se referia à política interna e à Guerra de Espanha. A Imprensa desencadeou uma torpe campanha de apoio à rebelião franquista contra o governo legítimo de Manuel Azaña, falando da «Espanha espanhola contra a Espanha moscovita». No «Diário de Notícias», António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional e chantre da «Política do Espírito», elevava-se contra a «barbárie comunista» e criticava os «intelectuais vermelhos», acusava Malraux, Cassou, Huxley, Sinclair Lewis e Thomas Mann, insistia na falsa notícia segundo a qual o poeta Garcia Lorca, assassinado pelos falangistas, fora «vítima dos marxistas de Barcelona». Tudo na maior impunidade, pois a Censura inviabilizaria o contraditório.

A abjecção de certos «crânios pensantes» da época ultrapassou todos os limites do pudor: escritores, jornalistas e artistas simpatizantes dos franquistas, no «Diário da Manhã», o órgão oficial da União Nacional, corriam «em socorro dos seus irmãos de Espanha, vítimas do furor bárbaro que ameaçava subverter toda a flor mais alta da inteligência, da cultura e da arte da Espanha moderna». Alguns nomes sonantes: Júlio Dantas, Eugénio de Castro, Agostinho de Campos, Malheiro Dias, Afonso Lopes Vieira, Correia de Oliveira, Alfredo Cortês, Pardal Monteiro, Canto da Maia, António Soares, Ivo Cruz, Eduardo Schwalbach, Joaquim Manso, Henrique Galvão (sic, o próprio), Manuel Múrias, João Ameal, Marcelo Caetano.

Caso exemplar, honra do nosso jornalismo, foi o protagonizado por Mário Neves, então redactor do «Diário de Lisboa», que testemunhou a chacina perpetrada em Badajoz, no mês de Agosto de 1936, pelos franquistas. Apesar de proibida a continuação da sua correspondência e de interrogado pela polícia política, a PVDE, o jornalista, sublinha José-Augusto França, deixou no vespertino «um testemunho histórico referenciado pela obra fundamental de Hugh Thomas [‘A Guerra Civil de Espanha’], e confirmado também por Arthur Koestler, no seu ‘Spanish Testament’ de 1937».

Quinze capítulos (Um Novo Governo, Uma Nova Educação, O 28 de Maio, A Exposição do «Ano X», O Mundo Alheio, A Guerra de Espanha, A Milícia Nacional, O Império Colonial, A Defesa e a Segurança, A Vida Artística, A Vida Literária, Todo o Cinema, A Vida Teatral, A Imprensa Possível, Lisboa 1936) permitem ao leitor, pela quantidade e qualidade do material arrolado, formar um juízo fundamentado acerca do que foi essa época de que alguns dizem hoje ter saudades e em que outros, talvez por não a terem estudado, julgam que os lisboetas viviam melhor do que hoje.

É certo que as preocupações de 1936 não eram as de agora, mas não é menos certo que as de ontem eram bem mais difíceis de superar do que as deste segundo decénio do século XXI. É que, antes, a questão primacial consistia em viver ou não viver em ditadura – problema que hoje parece não se encontrar no nosso horizonte, embora haja por aí quem reze pela vinda de um «salazarzinho». Talvez por isso seja possível responder como se segue à pergunta de José-Augusto França que transcrevemos no início deste texto: «Era possível vegetar assim em Lisboa, em 1936. Mas viver, viver com dignidade, só seria possível na condição de lutar por não ser cúmplice da asfixiante tétrade ‘Deus, Pátria, Família, Trabalho’ imposta pelo salazarismo. Foi o que alguns, mas não muitos, veneráveis cidadãos fizeram no seu quotidiano. Também a eles ficámos a dever a democracia.»

José-Augusto França, «O Ano X – Lisboa, 1936», Editorial Presença, 2010, 324 páginas