Darwin:a prédica católico-romana

António Rego Chaves

A segunda parte de «Evolução a Duas Vozes», assinada pelo Padre Carreira das Neves, é e não é uma resposta ao monólogo do cientismo escrito por Teresa Avelar, cujo conteúdo aqui apreciámos. Não se trata de uma resposta, pois o autor parece mais preocupado em expor a sua concepção de Deus, da criação e da alma do que com Darwin e a «Origem das Espécies»; será uma resposta na medida em que opta pela conciliação entre ciência e fé e recusa a polémica com a bióloga. Diz-nos, assim, logo a abrir: «A minha abordagem não é uma resposta científica às teses científicas da Professora Teresa Avelar, mas uma abordagem crítica à falsa abordagem dos religiosos criacionistas, por um lado, e da fé judeo-cristã, devidamente enquadrada, por outro. Sou do parecer que a atitude correcta é a da abertura ao diálogo entre ciência e fé, partindo do pressuposto de que a verdadeira ciência nunca faz mal à fé nem à Bíblia e vice-versa.»

Escreve ainda o sacerdote católico: «Todos os problemas do passado e do presente sobre o drama à volta da criação entre cientistas e crentes monoteístas residem na falta de ‘cultura’ bíblica. Os milhões de cristãos que lutam contra Darwin e a ciência da evolução partem do princípio de que a Bíblia é a Palavra de Deus e que deve ser acolhida de maneira literal e historicista. Para eles, o facto de a Bíblia ser inspirada alberga dentro de si uma verdade literal que nenhuma ciência pode alterar. Está por cima de tudo o que é ciência. É a ciência que lhe deve obedecer e não o contrário. Não entendem que a Bíblia começa por ser uma literatura e que toda a literatura deve ser interpretada segundo os seus géneros literários, texto e contexto, autor/redactor e a sua mensagem e de acordo com o tempo e o espaço de tudo e de todos. A Bíblia nasce da fé, sempre histórica e relativa, e não a fé da Bíblia em linha directa, isto é, sem interpretação.» (…) «Os autores da Bíblia nada sabiam de evolucionismo e leis da Natureza. Toda a confusão advém, pois, de saber ou não saber ler/interpretar a literatura bíblica.» A explicação é hábil, mas peca por defeito, porque tardia: basta lembrarmo-nos de que a Igreja Católica e Romana tem quase dois mil anos e de que, ainda há poucos séculos, quem se atrevesse a falar assim teria sem dúvida como destino, não diríamos as chamas do Inferno, mas as ateadas, com tácita ou expressa bênção papal, pela «Santa» Inquisição.

A verdade é que o Padre Carreira das Neves quase põe a ridículo muito do que às crianças da minha geração e às das que a precederam foi ensinado nas escolas pelo clero, nomeadamente que Eva nasceu da «costela de Adão» e Jesus «por obra e graça do Espírito Santo». Diz-nos agora a nós, os que sabemos ler, mas não decerto a milhões de portugueses de todas as idades, que «estas são duas grandes metáforas sobre a humanidade terrestre de Adão e Eva» e sobre a divindade de Jesus. Como se houvesse, de facto, duas espécies de cristãos: os que têm e os que não têm direito…à metáfora. Não menos de estranhar é que, para nos apresentar a «infalível» opinião papal acerca da criação e do evolucionismo, o autor se limite a transcrever e comentar apenas as ideias de João Paulo II e Bento XVI, que dir-se-ia terem sido os primeiros e únicos sumos pontífices que se pronunciaram sobre Charles Darwin e «A Origem da Espécies». Digamo-lo sem rodeios: cremos indefensável, em termos de rigor histórico e intelectual, tal opção, pois ela ignora ou quer ignorar cerca de cem anos de anátemas papistas.

Continua o sacerdote: «Regressamos sempre à pergunta sagrada: «Quem é Deus? Expurgando Deus dos deuses que nós fabricamos – e que a Bíblia fabrica –, ao respondermos com Deus por tudo e por nada do que nos apoquenta, ficamos com Deus nos braços sem saber o que fazer dele. Passou o tempo do Deus-tapa-buracos, do Deus que tudo resolve, segundo a Bíblia, a favor dos seus crentes, do Deus dos estóicos que tudo aceitam como destino e fatalismo – o Deus da ataraxia –, e, porque não, do Deus da reencarnação, do monismo panteísta da New Age e de tantos deuses esotéricos e exotéricos que se passeiam entre romances, filosofias primárias, medicinas paralelas.» Se esta é a questão, que fazer com o que ainda nos sobra de Deus? Arredá-Lo de vez? Ignorá-Lo? Ou orar por Ele?

O autor recorre a um texto manuscrito do Padre João Resina Rodrigues, filósofo e professor de Física Mecânica, para nos elucidar sobre a forma como encara as relações entre ciência e religião. Transcreve: «A descrição das coisas que existem no Universo e da maneira como o Universo está quieto ou evolui pertence às ciências, não pertence à religião. A religião ensina-nos a viver no Universo tal como ele é, amando a Deus e aos irmãos, trabalhando pela justiça e pela paz.» E conclui, por sua vez, o Padre Carreira das Neves: «Nem a criação nem a evolução se contradizem se partirmos do princípio de que não há criação sem evolução e do princípio de que o criacionismo bíblico é um erro há muito refutado pelos estudiosos da Bíblia.» (…) «Com fé ou sem fé, com religião ou sem religião, Deus, se existe – e eu acredito que existe – está acima e para além do Universo material e do Universo humano. Acontece, no entanto, que, para nós, humanos, não há Deus se não houver quem pense que ele existe. E só os humanos – a maioria dos humanos – pensam na sua existência, discutem a sua existência, formulam teorias e teses, modos de ser, a partir da sua existência.» Uma única certeza, então: há humanos que crêem em Deus, outros no «big-bang». Coisas de que os chimpanzés que Darwin apontou como nossos avós nunca foram capazes. Enfim, não é muito, mas foi, de acordo com esta débil prédica católica e romana, o que se pôde arranjar…

Padre Carreira das Neves, «Criação e Evolução: a verdade em dois andamentos», Bertrand, 2009, 95 páginas