Cristo e a herança de Job (Slavoj Zizek)

António Rego Chaves

Há uma corda bamba que por vezes aproxima o mais fútil diletantismo das subtilezas teológicas: nela se equilibraria o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, autor de várias obras já editadas pela Relógio D’Água, como «A Marioneta e o Anão – O Cristianismo entre a Perversão e a Subversão», «Bem-Vindo ao Deserto Real» ou «Elogio da Intolerância». Algo nos fará, porém, desconfiar do seu trajecto: escreve de mais – o que pode significar que não lhe sobra tempo para pensar.

Um pé em Marx, outro em Lacan, apressa-se a declarar que o prestígio de que goza ultimamente Hannah Arendt é «o sinal mais evidente da derrota da esquerda». Aqui, nada a opor – basta recordar esse tão erróneo conceito de «totalitarismo», muito querido dos ideólogos do «Centrão».

Vejamos o discurso do ensaísta: «No seu ‘Pai, porque me abandonaste?’ o próprio Cristo comete o que é o pecado supremo aos olhos de um cristão: vacila na sua Fé. Embora em todas as outras religiões haja pessoas que não acreditam em Deus, é só no cristianismo que Deus não acredita em si mesmo.» Avancemos um pouco mais: «A herança de Job proíbe-nos de buscar refúgio na figura transcendente e estabelecida de Deus como Senhor secreto que conhece o sentido do que nos parece a nós uma catástrofe sem sentido – o Deus que vê o quadro completo, no qual aquilo que vemos como uma mancha contribui para a harmonia global. Quando estamos perante um acontecimento como o Holocausto ou a morte de milhões de seres humanos no Congo durante estes últimos anos, não será obsceno afirmarmos que estas manchas têm um sentido mais profundo na medida em que contribuem para a harmonia do Todo? Haverá um Todo que possa justificar teologicamente e, por isso, redimir/superar um acontecimento como o Holocausto? A morte de Cristo na cruz significa assim que devemos desfazer-nos sem reservas da ideia de Deus enquanto zelador transcendente garantindo o feliz desfecho dos nossos actos, enquanto garante de uma teleologia histórica: a morte de Cristo na cruz é a morte deste Deus, repete a atitude de Job, recusa qualquer ‘sentimento mais profundo’ que obscureça o real brutal das catástrofes históricas.» Caminhemos para uma conclusão, se é que ela é alcançável em tal matéria: «Deus não é justo nem injusto, mas simplesmente impotente. O que Job compreendeu de súbito é que não era ele, mas o próprio Deus, que as calamidades sofridas por Job punham à prova, sendo que Deus fracassara miseravelmente na sua prestação de provas.» Uma vez mais: fútil diletantismo, subtilezas teológicas?

Continuemos: «Depois de Job ter sido ferido pelas calamidades, os seus amigos teológicos intervêm, oferecendo interpretações que tornam as calamidades dotadas de sentido (quando mais tarde Deus entra em cena, dá razão a Job contra os defensores teológicos da fé) e a grandeza de Job não é tanto protestar a sua inocência como insistir no sem-sentido das suas calamidades.» (….) «A herança de Job proíbe-nos a atitude de buscar refúgio na figura estabelecida de Deus como Senhor secreto que conhece o sentido do que nos parece a nós uma catástrofe sem sentido, o Deus que vê o quadro completo, no qual aquilo que vemos como uma mancha contribui para a harmonia global». (…) «A morte de Cristo na cruz significa que devemos desfazer-nos sem reservas da ideia de Deus enquanto zelador transcendente garantindo o feliz desfecho dos nossos actos, enquanto garante de uma teleologia histórica: a morte de Cristo na cruz é a morte deste Deus, repete a atitude de Job, recusa qualquer ‘sentido mais profundo’ que obscureça o real brutal das catástrofes históricas» – não se cansa de proclamar Slavoj Zizek. Mas, agora, dá um passo em frente: «Declarando a sua solidariedade com Job, Deus declara-se como Deus ‘público’ – facto que se consuma na revelação cristã. O que significa que quem morre na cruz é precisamente o Deus ‘privado’, o Deus do nosso ‘modo de vida’, o Deus que funda uma comunidade particular. A mensagem subjacente da morte de Cristo é que um Deus ‘público’ deixou de poder ser um Deus vivo: tem de morrer como Deus (ou, como no judaísmo, pode ser um Deus da Letra morta) – o espaço público é por definição ‘ateu’. O ‘Espírito Santo’ é assim um Deus ‘público’, o que resta de Deus no espaço público universal: o espaço virtual e radicalmente dessubstancializado do colectivo dos crentes.» Pela última vez: fútil diletantismo, subtilezas teológicas?

Talvez nem uma coisa nem outra, pois, para este esloveno, o Espírito Santo é a comunidade dos crentes, comunidade essa que pouco ou nada teria a ver com a reivindicada por Bento XVI, assim descrito pelo autor: «o rosto do papa Ratzinger é por si só uma provocação – como se, por detrás da superfície sorridente, distinguíssemos, por meio das sobrancelhas escuras e outros traços, os contornos insólitos de um vampiro… Trata-se de uma verdadeira coincidência dos contrários: o rasgado sorriso benevolente escondendo um Mal obsceno.» A comunidade dos crentes, para este bom conhecedor dos Estados Unidos da América, tem mais a ver como os «Wobblies» («Industrial Workers of the World»), cujo sindicalismo insistiu, a partir de 1905, na democracia directa no local de trabalho e na autogestão. Significa isto que «a comunidade dos crentes de Paulo se encontra hoje entre os grupos políticos radicais, e não nas igrejas», enquanto «colectivos políticos apostados na emancipação». Utilizando uma linguagem mais sofisticada, de recorte hegeliano: «quando os sujeitos que lutam pela emancipação se auto-organizam, é o próprio ‘Espírito’ que se organiza por meio deles». Vale dizer que os Job de todo o mundo, vulgo «proletários», são incitados a unir-se para combater os males que lhes são causados por outros humanos, vulgo «capitalistas». Nada que Marx não tivesse advogado já no «estúpido século XIX» invectivado por Léon Daudet...

Slavoj Zizek, «A Monstruosidade Cristo», Relógio D’Água, 2008, 137 páginas