Um estranho colaboracionista (Bertrand de Jouvenel)

António Rego Chaves

No dia 17 de Outubro de 1983, com 78 anos, Raymond Aron – o gélido «profeta» que teria tido sempre razão contra Sartre, excepto quando, aliás como o PCF, nada percebeu da contra-cultura do Maio de 68 –, abandonava o Palácio da Justiça de Paris. Acabara de testemunhar em favor do jornalista Bertrand de Jouvenel (1903-1987), que o historiador Zeev Sternhell qualificara de «fascista» e «pró-nazi». O sociólogo morreria nesse mesmo dia, depois de brindar o tribunal com uma magistral dissertação acerca da «verdade histórica» relativa a uma época que se iniciara cerca de 1930 e só terminara em 25 de Agosto de 1944, com a libertação de Paris do jugo nazi.

Zeev Sternhell, porém, mesmo depois de condenado por crime de difamação, não abdicaria do seu ponto de vista em relação a Bertrand de Jouvenel. Em Abril último, reportando-se a uma entrevista concedida por Hitler ao jornalista, em 1936, na qual denunciava a simpatia do entrevistador pelo entrevistado, sublinhava que, nessa altura, já o campo de Dachau funcionava há 35 meses, a Noite das Facas Longas ocorrera quase dois anos antes e as leis raciais de Nuremberga tinham sido publicadas há seis meses. Além disso, recordava que o jornalista desempenhara até 1938 um papel de grande relevo no «partido fascista de Jacques Doriot» e publicara, logo após a ocupação de parte da França pelas forças nazis, a obra «Depois da Derrota», que fora logo traduzida para alemão, transformando-se numa das peças fundamentais da propaganda intelectual hitleriana, tal como dois outros dos seus livros, «A Decomposição da Europa Liberal» e um ensaio sobre Napoleão e a economia dirigida, onde o autor procurava atribuir à Inglaterra o papel de inimiga hereditária da França.

Os filhos de Bertrand de Jouvenel, porém, não deixariam Zeev Sternhell sem resposta: em carta dirigida ao «Le Monde», no mês passado, lembravam que seu pai fora instado pelo general Henri Navarre, alto responsável da Organização de Resistência do Exército (ORA), a entrar em contacto «com as suas relações alemãs e, muito particularmente, com o embaixador em Paris», Otto Abetz; e que o coronel Paillole, antigo director da segurança militar, atestara que o ofendido «era um ilustre correspondente do serviço de informações francês desde Outubro de 1938».

Uma frase de Aron, no seu depoimento, ajuda-nos a compreender muito do que foi a vida de Jouvenel durante dois decénios: «É verdade que nós, os homens desta geração, estávamos desesperados com a fraqueza das democracias. Sentíamos vir a guerra. Alguns sonharam com uma coisa diferente, que suprimisse essa fraqueza.»

É necessário ler com atenção as páginas de «Un voyageur dans le siècle» para saber o que se passou com Bertrand de Jouvenel e, talvez, com muitos outros intelectuais da sua época, tendo sempre bem presente a figura de Otto Abetz, desde os anos 30 paladino da amizade da França e da Alemanha, da aproximação entre as suas juventudes anticomunistas e da reconciliação dos antigos combatentes dos dois países.

Muito antes do início da II Guerra Mundial, Abetz estabelece e desenvolve relações no mínimo cordiais com Drieu la Rochelle, Robert Brasillach, Maurice Bardèche, Jacques Bainville, Charles Maurras, Henry de Montherlant, Henri Massis, Bertrand de Jouvenel e dezenas de outros intelectuais. Serão, mais tarde, todos colaboracionistas? Longe disso. Mas todos se revelarão objectivamente úteis, de uma ou outra forma, à política alemã de transformação do irredutível inimigo de ontem em efectivo cúmplice de hoje ou potencial aliado de amanhã. Aliás, Otto Abetz manifestar-se-á sempre, acima de tudo, um hábil aliciador de «fazedores de opinião» franceses, capazes de, uma vez cimentado o domínio da Alemanha sobre a Europa, serem integrados num bloco ideológico apto a erradicar o «vírus bolchevique» propagado pela URSS.

Drieu la Rochelle escreve, em 1940, a Bertrand de Jouvenel: «Tu sempre foste pela Europa. E eis que já não a queres porque ela te chega com características que te são odiosas. Mas as coisas desejadas não chegam com o aspecto que se quereria.» Depois, à beira do desespero, reconhecerá: «A Europa está perdida. Em certo sentido tu tinhas razão quando me dizias que não podemos fazer a Europa a qualquer preço.»

É então já tarde, tarde de mais para se juntar à Resistência armada, quando Bertrand de Jouvenel descobre que, mesmo para os «amigos» alemães do seu país, falar de «colaboração» da França com os objectivos estratégicos de Hitler nada mais poderá significar do que reduzi-la à condição de «província» de uma Europa nazificada. E, a 21 de Setembro de 1943, quando já se tornou de todo inútil o seu trabalho para os serviços secretos franceses, refugia-se na Suiça.

Confessa-nos nestas suas memórias, chegada a hora da verdade: «Sabia bem que o meu país tinha sido libertado pela vitória russa e pelo desembarque dos Aliados, aos quais se tinham juntado as tropas francesas. Não estava entusiasmado pelas fanfarronadas de certos franceses, pretendendo que a vitória tinha sido obra sua. (…) «Apesar de não ser olhado como resistente, considerava-me como tal; de acordo com as ordens do Serviço de Informação, tive de ter contactos com os alemães, particularmente com Otto Abetz; recolhia informações.» (…) «A origem da minha desordem interior residia em mim, no sentimento que experimentava de não ter sido o herói ou pelo menos o homem lúcido e firme que sempre teria desejado ser.»

Jean-Paul Sartre havia afirmado, em fórmula lapidar: «Talleyrand é o modelo do colaboracionista.» O mesmo seria dizer que o colaboracionista é um escravo pago a peso de ouro, um desprezível calculista, um homem sem carácter travestido de «realista». Bertrand de Jouvenel pega o touro pelos cornos e deixa bem impresso, preto no branco, que o seu maior erro foi renegar do sonho (a vitória da Resistência), acomodando-se às circunstâncias. Quem ousará, hoje, lançar-lhe a primeira pedra?

Bertrand de Jouvenel, «Un voyageur dans le siècle», Robert Laffont, 1979, 494 páginas