Moralistas do século XVII (La Rochefoucauld)

A Terra sem o Céu

António Rego Chaves

Foi François VI, Duque de La Rochefoucauld (1613-1680), homem de muito arrojadas armas e nada mimosas letras. Depois de ter conspirado – sem nenhum êxito e subidos prejuízos – contra os cardeais Richelieu e Mazarino, escreveu as «Memórias» (1662) e as «Reflexões ou sentenças e máximas morais» (1664) que escandalizaram meio mundo e lhe conferiram, pelo menos até hoje, a «imortalidade». Ao contrário do seu conturbado coetâneo Blaise Pascal, não olhava agora para a Terra, a seguir para o Céu: deixou-se ficar muito cá por baixo, a observar os primatas ditos humanos. Assim, e como sintetizou com felicidade o crítico literário Robert Kanters, «começou a viver como d’Artagnan» e «acabou por pensar como Alceste» [o herói da justamente célebre peça «O Misantropo», de Molière].

O seu olhar era de águia, as suas intuições não poucas vezes anteciparam Freud, Proust, Sartre: mergulhava como poucos na negrura do carácter dos seres com quem coexistia e, em uma ou duas linhas, desfazia equívocos, expunha à luz do sol ocultas mazelas, denunciava mistificações. Madame de La Fayette, que lhe alegrou os derradeiros anos, bem procurava segurar-lhe o braço, substituindo aqui e ali um «todos» por um «quase todos», ou um «sim» por um «talvez»: a verdade lá ficava, escondida com o rabo de fora, pois o «grand seigneur» seria delicado, mas não submisso. Aliás, teve outras preciosas admiradoras, como Madame de Maintenon, que revelaria por carta, em 1666, serem então o Livro de Job e as «Máximas» as suas únicas leituras.

Espanta a perspicácia do Duque: na primeira edição da sua obra-prima recomendava ao leitor que desde o início metesse na cabeça que nenhum aforismo lhe dizia respeito em particular e que ele, leitor, era a única excepção ao que afirmava acerca da generalidade das pessoas. Só depois desta primeira leitura o neófito se encontraria apto a ajuizar da justeza do que ficara escrito. Táctica evidente, estratégia brilhante: ninguém poderia sair das «Máximas» sem se sentir atingido, retratado, posto em xeque.

Abstenhamo-nos de tomar La Rochefoucauld por pessimista (Roland Barthes sublinhou que as «Máximas» são um dicionário, não um livro de receitas) ou, então, não o julguemos mais pessimista do que Maquiavel ou Hobbes. Eram todos bons repórteres, nada imaginavam, limitavam-se a aceder à mesma realidade usando conceitos diversos: com o seu «amor-próprio», «cada ‘eu’ é um ‘príncipe’ em potência e a sociedade uma selva onde se trava uma ‘luta pela vida’», sendo «o amor-próprio esse instinto vital que leva cada ‘eu’ a defender-se dos outros, a fazer triunfar o seu interesse, a marcar a sua superioridade pela força ou pela manha» (André-Alain Morello). Quanto ao divino, tem a palavra, em tão elevada instância, o certeiro Sainte-Beuve – e ficamos conversados: «As ‘Máximas’ de La Rochefoucauld não contradizem em nada o cristianismo: dispensam-no.»

Desfazia-se a imagem idealizada dos indivíduos. As virtudes passavam a ser vícios (mal) disfarçados, a sinceridade não era mais do que «uma fina dissimulação para atrair a confiança dos outros», o segredo da liberalidade residia na vaidade de dar, a piedade explicava-se por «um sentimento dos nossos próprios males nos males de outrem», a amizade por «uma conciliação recíproca de interesses», «um comércio em que o amor-próprio visa sempre alguma coisa a ganhar». Sintetizou com mão de mestre Paul Bénichou: sem La Rochefoucauld, apenas haveria «uma moral heróica, que abre um caminho a partir da natureza até à grandeza, definindo os condicionamentos [Corneille]; uma moral cristã rigorosa que reduz a zero toda a natureza humana [Pascal]; enfim, uma moral mundana, a um tempo sem ilusões e sem angústia, que nos recusa a grandeza sem nos retirar a confiança [Molière].» Ou seja, se não tivesse existido, o Duque teria de ser inventado.

Como diz François Dupuigrenet Desroussilles, «denegrir de tal forma as virtudes era, aos olhos da gente vulgar e do poder, degradar o ser humano, feito à imagem de Deus, reduzindo as suas mais nobres aspirações ao interesse e ao egoísmo. Sob este olhar frio, a moral corrente perdia toda a sua credibilidade. O homem movido pelo seu corpo (os humores), pelo seu destino (a fortuna), pelo amor que tem por si mesmo (o amor-próprio) não podia senão desesperar de atingir a Verdade, a Grandeza e o Bem». Ou seja, «todos os valores em que o homem de acção e o político devem acreditar ou, pelo menos, devem parecer que acreditam. Um dos primeiros leitores condena a obra porque, em sua opinião, ‘descobre as partes pudendas da vida civil e da sociedade humana, sobre as quais se deve correr o pano’.» Uma época findava, dando lugar não se sabia a que «homem novo». Saber-se-ia depois, a partir de 1789, com a Revolução Francesa, a partir de 1917, com a soviética, a partir de 1949, com a de Mao?

Emil Cioran, segundo cremos, deixou-nos algo bem esclarecedor e mesmo definitivo sobre todos os grandes moralistas, partindo do exemplo dado pelos franceses dos séculos XVII e XVIII: «As palavras amargas emanam de uma sensibilidade ulcerada, de uma delicadeza espezinhada. O veneno de um La Rochefoucauld, de um Chamfort, foi a desforra que eles escolheram contra um mundo talhado por feras. Toda a amargura esconde uma vingança e traduz-se por um sistema: o pessimismo – essa ‘crueldade dos vencidos’ que não foram capazes de perdoar à vida ter gorado as suas expectativas. Colocado nos antípodas da ingenuidade, da existência integral e autêntica, o moralista esgota-se num frente-a-frente entre si e os outros. Tudo lhe parece convenção: divulga os móbiles dos sentimentos e dos actos, desmascara os simulacros da civilização: isto porque sofre por os ter entrevisto e deixado para trás; pois esses simulacros fazem viver, são a vida.»

La Rochefoucauld, «Maximes et Mémoires», Éditions Payot & Rivages, 2001, 387 páginas