Hermann Broch («A Morte de Virgílio», 1.º vol.)

Broch, Virgílio e os outros

António Rego Chaves

Poderia ter sido o seu último livro, «A Morte de Virgílio» (1945). Não foi. Hermann Broch continuou a escrever até ao fim, em 1951, mas cada vez mais longe da ficção e do lirismo. Talvez por causa de Auschwitz. Talvez porque algo mais queria ainda construir, pelo pensamento e pela acção, no sentido de contribuir para a impossibilidade de assistir a novos Auschwitz.

Poucos como ele estavam conscientes do que os intelectuais NÃO fizeram para impedir a barbárie nazi. Di-lo-ia de forma contundente em 1950, numa obra de ficção que intitulou «Os Inocentes» e onde se detém nas situações e nos tipos alemães característicos do período pré-hitleriano. Utilizando as palavras do autor: «As personagens escolhidas para os representar são desprovidas de convicções políticas… Nenhuma delas é directamente ‘responsável’ pela catástrofe hitleriana. Foi, porém, a esse estado de alma e de espírito – a experiência provou-o – que o nazismo foi buscar a sua verdadeira força. A indiferença política é, com efeito, uma indiferença ética, e por esse aspecto aparenta-se estreitamente com a perversão ética. Ou seja, a maioria dos que não são responsáveis do ponto de vista político encontra-se num estádio de culpabilidade ética fortemente avançado.»

Se «A Morte de Virgílio» mergulha no século I antes de Cristo, a verdade é que as suas interrogações são quase sempre intemporais. Os temas maiores da vida e da morte, do amor e da criação literária, percorrem toda a obra, que é um longo romance/poema centrado na agonia do autor da «Eneida». O poeta é transportado pelas miseráveis ruelas do porto de Brindisi para o palácio de Octávio, onde passa uma noite atormentada, em que a sua corrente de consciência o leva a evocar a sua obra-prima. O resultado não é reconfortante: Virgílio quer agora queimar a «Eneida», ciente da vanidade da sua «glória» e da vanidade da obra a que dedicou anos de vida.

Os dois primeiros capítulos de «A Morte de Virgílio» que preenchem este volume da edição portuguesa são, diga-se desde já, de difícil acesso. Até um leitor tão excelentemente dotado como Aldous Huxley o reconheceu. Escreveu, em carta ao autor: «O meu sentimento pessoal é que a quantidade destrói a qualidade e que, apesar de, intrinsecamente, as frases de que se compõem estas secções [de lirismo filosófico] serem ricas de beleza e de significado, é a sua quantidade – devido à sua intensidade e à sua estranheza estilística – que impõe uma tensão ao espírito do leitor e o torna, posteriormente, incapaz de lhe reagir como seria desejável.» Théodore Ziolowski reforçaria esta apreciação, ao acentuar que «a longa segunda secção [o último capítulo deste volume] é inteiramente lírica, sem qualquer narrativa, e as imagens desencarnadas ficam intangíveis até à frustração.»

O problema está, pois, em que o volume em apreço «não se lê como um romance», porque, em rigor, é bem mais uma obra lírica do que um romance. No dizer do autor, «A Morte de Virgílio» seria «um poema que se estende, de um só fôlego, por mais de quinhentas páginas». Talvez não seja bem assim – e a terceira e penúltima parte do texto, inserida no segundo volume da edição portuguesa, esteja mais próxima do romance/ensaio ou de um diálogo de Platão. Seja como for, fica a advertência: «ler devagar!».

Encontram-se aqui, como fez notar Broch, algumas das mais longas frases desde sempre escritas em qualquer literatura – o que desencorajará muitos, mas talvez menos do que aqueles que se sentiram sem alento perante a por vezes desesperante complexidade do Kant da «Crítica da Razão Pura» ou do Hegel da «Fenomenologia do Espírito». O que está em causa, contudo, nos casos apontados e em outros, talvez não seja bem a obra a ler, mas a concepção que temos da leitura: se a tomamos como um tempo de lazer ou de actividade lúdica, abandonemos já toda a esperança; se quisermos aprender com Broch, Kant ou Hegel, abdiquemos do «direito à preguiça».

A «lição» do autor, nestas duas centenas e meia de páginas, talvez consista sobretudo em, ao pôr em causa o «para quê» da «Eneida», questionar também a sua própria obra, seja ela passada, presente ou futura, obra de quem assistiu à ascensão do nazismo, sem procurar detê-lo com todas as forças, assim como o poeta romano presenciara, distante, a escravatura no Império e o contraste entre a opulência de muitos e a miséria de outros seus concidadãos. Se Virgílio é posto em xeque, é ainda mais visada uma geração de intelectuais de fala alemã que se remeteu às suas elucubrações, incapaz de falar aos seus coetâneos, de os avisar do perigo, de os amar.

Ouçamos o grito de Broch, que é contra si e seus pares: «A obra de arte tornou-se numa não-arte, manto impudico que esconde a vaidade artística, tão espúria que até a nudez autocomplacente do artista que ela exibia se transformou em máscara; e apesar da impudica adoração do eu, da preocupação fútil com a beleza, da busca de meros efeitos, mesmo assim, uma tal não-arte podia, apesar da sua efemeridade irrenovável e dos seus limites impossíveis de alargar, encontrar mais facilmente caminhos até ao povo do que alguma vez o conseguiu a verdadeira arte; é apenas um caminho ilusório, um recurso usado para escapar da solidão, mas não, porém, o caminho da ligação à comunidade dos homens, que a verdadeira arte procura na sua ânsia de partilhar da comunidade dos homens…»

Por que sente Virgílio, à beira da morte, ímpetos de destruir a «Eneida», o seu «imortal» poema, de que tão orgulhoso se sentira? «Porque a humanidade, porque a actividade humana e a necessidade humana de ajuda tinham significado tão pouco para ele, que nada disso tinha retido com amor nem sequer transformado em poesia, porque tudo tinha permanecido não-escrito, só inutilmente glorificado e transformado em beleza.» Não foi esta – mas decerto poderia ter sido – a sua última palavra. Veremos porquê.

Hermann Broch, «A Morte de Virgílio», Primeiro Volume, Relógio d’Água, 1987, 253 páginas