António Borges Coelho, «História de Portugal», vol. II, «Portugal Medievo»

Rostos de um país

António Rego Chaves

Um dos grandes méritos de António Borges Coelho fica mais uma vez evidenciado neste segundo volume da sua «História de Portugal» – saber transmitir-nos a imagem de um país que não foi apenas um conjunto de estruturas económicas, sociais ou políticas. Que país, então, era esse? Um país habitado e talhado por gentes de múltiplas origens, crenças e culturas, aqui cristãos, ali judeus, acolá mouros, um país de heroísmo mas também de cobardice, de resistência mas também de colaboracionismo – amálgama de rostos, agora respeitáveis, logo grotescos. O país que fomos – e somos.

Nasce o Estado a que se chamaria Portugal, para Alexandre Herculano como para o autor, a 24 de Junho de 1128, dia da Batalha de São Mamede: «Direis: foi uma pequena batalha que envolveu tão-só um espaço político limitado, o do condado portucalense. A data não é arbitrária. Constitui um corte. A partir desse dia, o infante não aceitou mais, na Península Ibérica, autoridade superior, mesmo quando episodicamente pronunciou palavras de vassalagem que não cumpriu. A lenda de Egas Moniz, da mulher e dos filhos, de corda ao pescoço a caminho de Toledo, para pagar com a vida a infidelidade de Afonso Henriques, enaltece a honra, mas exalta também a determinação de independência por parte do monarca português.»

Na Idade Média, ensina Jacques Le Goff, «o quase-monopólio literário dos clérigos ocultou, pelo menos até ao século XIII, a intensidade da luta de classes». Burgueses contra nobres, senhores feudais contra camponeses, pobres contra ricos. Mas havia mais, havia a Igreja: «as suas múltiplas declarações de arbitragem imparcial entre fracos e fortes, diz o eminente medievalista francês, dissimulam mal o partido que, na maior parte dos casos, tomou, concretamente, o partido dos opressores. Comprometida na vida secular e formando um grupo social privilegiado que transformara, mesmo, em ordem, isto é, em casta, pela graça de Deus, a Igreja estava naturalmente inclinada a escolher o lado do qual, de facto, se encontrava.»

Borges Coelho «dá nomes aos bois», em vigoroso português vernáculo: «A Igreja abria e fechava as portas do sagrado com a chave do mistério da vida e da morte. Nas altas naves das catedrais, nas igrejas dos mosteiros ou sob o tecto das ermidas, guardadas pela cachorrada de pedra, ela reunia os vivos e os mortos. Pastoreava com o báculo, a espada e a lança. Usava e abusava da excomunhão. Fazia prevalecer sobre as outras religiões do Livro e sobre as crenças e práticas pagãs a sua explicação do mundo e da História. Colocava-se acima do poder civil. Só em 1289, pela Concordata, celebrada entre o Clero e o rei D. Dinis, se estabeleceu o equilíbrio, favorável à Coroa, entre o trono e o altar.»

Afonso Henriques «protege os concelhos ou associações armadas de camponeses desiguais, de mercadores e artífices», mas a Revolução só virá dois séculos após a morte do monarca e ficará gravada na «Crónica de D. João I». Adverte o historiador: «Alguns, não contestando a veracidade do corpo das informações, preocupam-se com as ‘intenções’ do cronista. Este processo de intenções, de que Fernão Lopes em especial é o alvo, revela a dificuldade em aceitar a crueza dos acontecimentos e a grandeza do homem que os relata e interpreta. Custa-lhes a aceitar que o comum do povo ouse afirmar-se como sujeito da História.» A bom entendedor…

O Mestre de Avis aceitou o convite de Álvaro Pais, padrasto de João das Regras, para matar o Andeiro – e o ex-vedor assegurou-lhe o apoio do povo de Lisboa. «Na verdade, os altos feitos têm às vezes começo em pessoas ‘cujo azo nenhum comum povo podia cuidar que por eles viesse’», salienta Borges Coelho citando Fernão Lopes. E anota: «Não são apenas os reis e os seus conselheiros ou os chefes militares que conduzem a seu bel-prazer o rebanho. Tudo influi sobre tudo, tudo está ligado, tudo conspira, escreveu Leibniz. Por baixo da espuma dos dias corre o magma. Por vezes engrossa no cimo da caldeira e rebenta.» Dessa vez rebentou com estrondo, mesmo.

D. João I terá seguido o conselho de Álvaro Pais: «Dai aquilo que vosso não é; prometei aquilo que não tendes; e perdoai a quem vos não errou.» Mas surgirão «doações que expressam um conteúdo novo, beneficiando os estratos mais baixos da sociedade, os mesteirais, os homens de pé e os assalariados dos ofícios e dos campos.» A causa do Mestre, porém, não podia passar sem militares: «Recrutava a peso de ouro os grandes nomes, pouco fiáveis, da nobreza e das armas. No fundo a caldeira fervia, afirmavam-se novos quadros, enquanto parte significativa dos contratados se bandeava para Castela.» A velha fidalgaria estava, é claro, a léguas da arraia-miúda e de Nuno Álvares, que disse preferir morrer com os seus honradamente, «ao redor das fraldas de um tão nobre rei, que os andar ele depois apanhando, de lugar em lugar, como perdigotos, e enforcá-los, uns e uns, pelos sobreiros».

A Revolução de 1383-1385 (porque de Revolução se tratou, «o poder caiu na rua, os de baixo, os meãos, os bons e os honrados, organizados nos concelhos, participaram decisivamente com os seus corpos e bens no embrião do novo poder»), sob a bandeira da «Liberdade e Isenção», divisas do Regedor e Defensor do Reino, abriu caminho a novos vassalos e ricos-homens. Dirigida no plano militar por dois fidalgos bastardos, João de Avis e Nuno Álvares, em desfavor dos fidalgos de linhagem, foi obra de gentes urbanas, lideradas pelos concelhos. Revolução Burguesa, pois então.

O investigador já antecipa a próxima jornada: «Tentarei olhar os de cima, que mandam e muitas vezes julgam que mandam, sem esquecer os meãos e aquelas e aqueles que suportam a carga. Todos entram na História. Não ocultarei os factos incómodos para os que mandaram e mandam. Não tenho medo de ser anátema. Medo, muito medo, sim, de errar, e também de cair na subida da próxima montanha.» Mas não é homem de errâncias; e, a cair, só se fosse de pé.

António Borges Coelho, «História de Portugal», volume II, «Portugal Medievo», Caminho, 2011, 357 páginas